Durante a pandemia do Covid-19, boa parte das pessoas tiveram que se manter em casa. Frente ao desafio, muitos artistas, intelectuais, empresas e prestadores de serviços descobriram nas transmissões em vídeo uma nova maneira de interagir com o público.
A atual onda de lives — termo em inglês pelo qual as transmissões ficaram conhecidas — impulsionou o consumo de um formato de vídeo que até a pandemia era utilizado apenas em situações especiais.
Há algumas semanas, eu assisti, por meio do Instagram da filósofa Djamila Ribeiro, uma live com a pesquisadora Carla Akotirene. Falar em Carla Akotirene é falar de potência, brilhantismo intelectual, interseccionalidade e referência para muitas mulheres, inclusive para mim, que acompanhei a live com os olhos brilhando.
Filha de Oxum, ela carrega a força do poder ancestral em sua trajetória. Sua mãe, Tania Maria Rodrigues da Silva, é trabalhadora ambulante e seu pai, Carlos Antônio Santos, é aposentado. Formada em Serviço Social na Universidade Católica de Salvador e doutoranda em Estudos de Gênero, Mulheres e Feminismos na Universidade Federal da Bahia, Carla trabalha na área de serviço social num pronto atendimento a mulheres vítimas de violências. Ela também é autora dos livros “O que é Interseccionalidade” (2019) e “Ó pa í, Prezada!” (2020).
Interseccionalidade (um dos pilares da Emerge) é um conceito novo, foi apresentado há 30 anos pela estadunidense Kimberlé Crenshaw, defensora dos direitos civis e uma das principais estudiosas da teoria crítica da raça.
O termo é essencial para nossas vidas e para entendimento e consciência das nossas lutas. De acordo com Carla Akotirene, a interseccionalidade é uma ferramenta teórica e metodológica usada para pensar a inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado e as articulações decorrentes desse sistema, que coloca as mulheres negras mais expostas e vulneráveis aos trânsitos destas estruturas.
Em seu livro de 2018, que integra a Coleção Feminismos Plurais, sob a coordenação de Djamila, Carla Akotirene discute o conceito como forma de abarcar a interseccionalidade a qual está submetida uma pessoa, em especial a mulher negra. O termo define um posicionamento do feminismo negro frente às opressões da nossa sociedade heteropatriarcal branca, desfazendo a ideia de um feminismo global e hegemônico como diretriz única para definir as pautas de luta e resistência. O conceito está sofrendo maus usos pelas branquitudes acadêmicas. Temas como homonacionalismo, matripotência iorubá, racismo religioso, LGBTlfobia e colonialismo moderno também são abordados no livro.
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Durante o bate-papo com Djamila, Carla nos dá um exemplo claro e atual de como entender o conceito: no BBB20, a participante Thelma representa a interseccionalidade. Outra forma de entendermos mais sobre o conceito no dia a dia é ouvindo mulheres como a Deputada Estadual de São Paulo Erica Malunguinho e as cantoras e compositoras Doralice e Bia Ferreira, já perfilada pela Emerge.
Outra referência é Patricia Hill Collins, professora de sociologia da Universidade de Maryland e autora de vários livros, entre eles “Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento”, lançado no Brasil no ano passado. A estudiosa americana aponta que a interseccionalidade não se resume em definir e segregar, ou seja, dividir as pessoas em categorias. Pelo contrário, interseccionalidade é entender-se como sujeito construído em vários sentidos, com os quais podemos explorar como as desigualdades sociais de raça, classe, gênero, sexualidade, idade, capacidade e etnia se moldam.
SOMOS UMA COMUNIDADE
Lembrando daquelas que passaram por aqui antes de nós, Carla citou a icônica Lélia Gonzalez, mulher de Oxum – assim como Carla –, mineira, antropóloga e ativista negra. Lélia foi pioneira ao denunciar, publicamente, o lugar da mulher negra na sociedade brasileira.
Carla também lembrou de Maria Beatriz Nascimento, sergipana, historiadora, poeta e ativista dos direitos humanos dos negros e das mulheres. Em 1995, ao defender uma amiga que sofria violência doméstica, Beatriz foi assassinada pelo próprio agressor. Ao falar de Beatriz, Carla nos levou a uma reflexão: a Lei 11340/2006 (conhecida como Lei Maria da Penha) poderia muito bem ser chamada de Lei Maria Beatriz do Nascimento.
“O feminicídio de mulheres negras acontece devido a insuficiência de políticas de avaliação e monitoramento das condições que elas estão expostas”, disse Carla.
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Ao longo da live, Carla usou uma frase que me chamou muito a atenção: “Xangô usa minha língua quando quer fazer justiça”.
Historicamente, o povo negro é vítima de apagamento e silenciamento. Nos momentos finais da conversa, as falas de Carla mexeram profundamente comigo e me identifiquei com muitas delas. Mesmo se aproximando dos 40 anos, ela disse que ainda se sente como uma menina com medo de ir mais adiante, mas segue em frente justamente por compreender que faz parte de uma coletividade maior. Ela explica:
“Numa panela de feijão, dá para colocar água para comer mais duas ou três pessoas. Nós somos essa água no feijão. Essa é a nossa sabedoria. Não somos uma hóstia na boca de cada um, pois não somos egoístas. Somos uma comunidade”
Uma pena a live ter durado apenas 60 minutos, pois ver Carla falar é uma chuva de aprendizado. Entre vários assuntos, ela também abordou maternidade de mulheres negras; gordofobia; capitalismo, heteropatriarcado e classe social.
“Somos pessoas pobres porque somos pessoas negras”, disse ela.
Carla conhece bem como funciona o racismo e o sexismo institucional. No livro Ó pa í, Prezada – resultado da dissertação de mestrado da autora – ela aborda a situação das penitenciárias femininas.
Utilizando uma metodologia afrocentrada, ela colheu e analisou dados sobre a ausência de políticas públicas em gênero e raça para mulheres encarceradas em Salvador. O estudo é um retrato do panorama das penitenciárias brasileiras e traz reflexões sobre a epidemia que é o encarceramento em massa, especialmente da população negra e pobre, na sociedade brasileira.
Por fim, Carla contou que acompanhou o pronunciamento do presidente eleito pela branquitude hegemônica após o pedido de demissão do ex-ministro Sérgio Moro. Ela revelou que sentiu dor ao vê-lo usando o nome de Marielle Franco. Em homenagem a vereadora, Carla citou um trecho do poema Maré Kawô, da autora Deise Fatuma, que também é integrante da banda instrumental Panteras Negras, formada por mulheres negras e LGBTQ:
IMAGENS: Divulgação/Pólen Livros