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Onde estão as arquitetas negras?

29/08/2019

Raça, gênero e classe definem a presença e invisibilidade das pessoas nos grandes centros urbanos. Na área de arquitetura e urbanismo, o mesmo vale para as profissionais

Raça, gênero e classe definem a presença e a invisibilidade das pessoas nos grandes centros urbanos. Na arquitetura e urbanismo, acontece o mesmo com as profissionais

Você já parou para pensar como o seu corpo se relaciona com a cidade? Caso não, é importante levar em conta que, dependendo da cor da pele, gênero e classe social, essa relação pode trazer mais ou menos dificuldades no direito básico de ir e vir.

Para entender o lance, voltemos um pouquinho na história. Durante a Primeira e Segunda Guerras Mundiais, as mulheres (brancas) do movimento feminista começaram a se relacionar com a cidade de forma até então nova. Com os homens no campo de batalha, elas começaram a trabalhar fora e passaram a ocupar espaços que antes eram reservados apenas para eles.

No entanto, na mesma época, muitas mulheres negras ainda traziam na memória e – no próprio corpo – as lembranças do período de escravização. A maioria dessas mulheres moravam nas periferias e sempre tiveram que trabalhar, seja no campo, nas indústrias ou em casas de famílias ricas; e sempre longe de suas residências. Essas mulheres tinham que enfrentar um caminho violento, saindo de casa ainda ao amanhecer, deixando seus filhos sozinhos ou sob cuidados de parentes e vizinhos.

Olhando o passado e o presente, o que mudou nessa lógica? De acordo com Sheroll Martins, arquiteta e urbanista que trabalha com habitação de interesse social, o panorama ainda é similar.

“Ainda hoje existem dificuldades de locomoção e falta de voz das pessoas, principalmente as mulheres negras periféricas, que precisam de um transporte público de qualidade para ir e vir, moradia mais próximas ao trabalho e melhores condições de vida para usufruir da cidade”

GABRIELA DE MATOS, SHEROLL MARTINS, GISELE BRITO E MAÍRA FERNANDES: RAÇA E GÊNERO NA ARQUITETURA E URBANISMO (Foto: Kalinca Maki)

Sheroll foi uma das palestrantes do evento “Debate Raça e Gênero na Arquitetura e Urbanismo”. O encontro também contou com a participação de Gabriela de Matos, arquiteta e urbanista especializada em sustentabilidade; Gisele Brito, jornalista e mestranda em Planejamento Urbano e Regional e integrante da Rede de Jornalistas da Periferia; e Maíra Fernandes, arquiteta e diretora do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-SP).

O debate aconteceu no primeiro andar do prédio do IAB. No mesmo ambiente, está instalado o café Bento 43, que permaneceu aberto durante o evento. 

REPRESENTATIVIDADE NA ARQUITETURA

Atualmente, muito se fala de representatividade. No campo da arquitetura, o conceito também se mostra importante. A presença de mulheres negras neste campo ainda é baixa, tanto no mercado quanto no meio acadêmico.

Há pouco mais de um ano, Gabriela de Matos criou o projeto Arquitetas Negras, que mapeia profissionais negras da área. Recentemente, o projeto lançou a primeira edição da revista homônima, publicação pioneira de arquitetura e urbanismo foco racial. Ela comenta:

“A Arquitetura é uma profissão que tem o poder de transformação social. Dessa forma, os profissionais da área precisam estar engajados no debate de raça e gênero. E falo dos não-negros também, pois não modificamos estrutura nenhuma sozinhas”

Na plateia, diversas alunas e alunos de arquitetura e pessoas engajadas nas causas racial e de gênero prestavam atenção e interagiam com as palestrantes. Uma dessas pessoas era Luara Macari, estudante de arquitetura e urbanismo da Escola da Cidade – e única negra de sua sala. Ela relatou que já pensou em desistir do curso diversas vezes, escancarando a solidão da mulher negra nesses espaços. A jovem também abordou a falta de pessoas negras no corpo docente e na direção das faculdades e nas bibliografias dos cursos:

“Como as instituições, no campo do discurso, desumaniza a gente, é muito importante mulheres negras estarem ocupando o IAB, que foi construído por mãos negras e está num bairro que está sendo gentrificado”

LUARA MACARI, ESTUDANTE DE ARQUITETURA E URBANISMO: FALTA REPRESENTATIVIDADE NAS FACULDADES (Foto: Kalinca Maki)

De acordo com o IBGE, entre 2012 e 2018, o número de brasileiros que se autodeclaram “preto” aumentou 32%, representando, no total, mais de 19 milhões de pessoas. Esse contingente somado a população “parda”, que também é negra e representa a maioria da população, totaliza 96,7 milhões de pessoas; aproximadamente 55,8% dos brasileiros. Porém, nos cursos de ensino superior de arquitetura e urbanismo pretos e pardos representam cerca de 30% dos estudantes, de acordo com o Censo da Educação Superior de 2016, realizado pelo Inep.

Voltando ao contexto urbanístico, outro ponto relevante é a própria estrutura dos bairros periféricos, locais onde a maioria da população negra reside. Lá, hospitais, comércios, espaços culturais e, até mesmo, vagas nas escolas são escassos.

Gildean Panikinho, produtor cultural e morador de Cidade Tiradentes, o maior conjunto habitacional da América Latina, questionou o porquê projetos de moradia em periferias são desenvolvido sem ter serviços básicos. Ele citou como exemplo o fato de o primeiro hospital de Cidade Tiradentes ter sido inaugurado somente 30 anos depois da fundação do conjunto.

Para Gisele Brito, não construir uma ampla e satisfatória rede de serviços nas periferias não é um acaso, mas sim um projeto de segregação de negros e pobres.

“A segregação é o ponto mais importante do racismo estrutural. Só a partir da eficiência da segregação sociorracial que a polícia, por exemplo, tem certeza que pode entrar de boa (com licença para matar) nas quebradas”

Para mudar essa lógica, não basta apenas profissionais técnicos com boa vontade. Além de políticas públicas, é necessário incluir pessoas com conhecimento e experiência do que é viver em uma cidade desigual e opressora. É como construir uma casa: precisa dos melhores materiais e profissionais para fazer de um terreno vazio um lar aconchegante.

O ENCONTRO ACONTECEU NO PRIMEIRO ANDAR DO PRÉDIO DO IAB, ONDE TAMBÉM FUNCIONA O CAFÉ BENTO 43 (Foto: Kalinca Maki)

Suelma Deus, assistente social que trabalha na área de habitação e moradora do bairro de Aricanduva, também na Zona Leste, mostrou otimismo ao participar do evento. Para ela, falar sobre questões raciais e de gênero com novos públicos é uma maneira de romper com o racismo estrutural presente nas cidades e na forma de habitá-las.

“Quando se tem um público de estudantes, você forma opinião”, diz ela. “Acho que a gente precisa disso, de renovação em todas as áreas de formação de conhecimento”.  

SERVIÇO
IAB São Paulo
O Instituto de Arquitetos do Brasil é uma entidade sem fins lucrativos que se dedica a temas essenciais ao arquiteto, à cultura arquitetônica e urbanística e à sociedade. Acompanhe as novidades do IAB SP no Instagram e saiba mais no site.

Café Bento 43
Um café-varanda no IAB-SP.
De segunda a quinta, das 9h às 19h. De sexta aos sábados, das 9h às 22h.
Siga o Bento 43 no Instagram.

Diálogos e Café
Diálogos e Café é a nova editoria da Emerge Mag, fruto de uma parceria com o Jardin do Centro, que congrega a marca homônima; o Quintal do Centro; o Bento 43 e a Quadra 27. A parceria de mídia consiste, principalmente, na cobertura de eventos culturais, artísticos e de viés social, de diferentes vertentes.

IMAGENS: Kalinca Maki

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