*Com reportagem de Matheus Santino.
Era 2012 quando Cibele Florêncio e a rede de hotéis em que trabalhava passaram por mudanças que definiram o sucesso de ambas nos anos seguintes. Após uma aquisição, a empresa virou parte do Grupo Accor, uma das maiores companhias hoteleiras do mundo. Já Cibele, realizou sua transição de gênero.
Mais de uma década depois, a Accor soma 325 empreendimentos em operação no Brasil e emprega cerca de 15 mil pessoas. Por sua vez, Cibele, aos 39 anos, acumula promoções dentro da empresa — atualmente, é maîtresse de banquetes no Novotel Morumbi, na capital paulista. Ela coordena as operações de um restaurante de alto padrão, numa função que exige sofisticação e gestão de pessoas.
“Eu entrei no segmento hoteleiro como menino gay. Realizar a transição de gênero e continuar a minha carreira na empresa, chegando num cargo de liderança, é extremamente importante.”
Cibele Florêncio, maîtresse do Novotel Morumbi.
Embora louvável, o caso de Cibele é um ponto fora da curva. O relatório Experiências de Trabalho de Pessoas LGBTQIA+ no Brasil, feito pela Out & Equal e o Instituto + Diversidade, aponta que 28% das pessoas da comunidade ocupam cargos de liderança. Dessas, 56% são homens gays, 20% são mulheres lésbicas e apenas 8% são pessoas trans.
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Para estar nessa pequena porcentagem, Cibele contou com a ajuda de um programa de desenvolvimento de talentos da Accor. Por um mês, ela teve a oportunidade de experimentar um novo cargo. Além da qualificação, o período serviu para ela ter certeza se queria mesmo a posição.

Ela quis. Cibele teve duas promoções num curto intervalo. Na penúltima, se tornou hostess. “Ou seja, a primeira pessoa que o cliente encontrava ao chegar no restaurante era uma travesti”, diz ela. “Em 2013, isso foi um marco muito grande”.
Laís Souza, há três anos gerente de Diversidade, Equidade e Inclusão da Accor, explica que a empresa foi pioneira ao falar do tema no mercado.
O primeiro compromisso público com a causa se deu em 2007. Em 2012, foi criado o grupo de afinidade de igualdade de gênero, que implementou iniciativas de enfrentamento ao assédio e à discriminação e de geração de oportunidades de carreira para mulheres. Em 2017, a Accor aderiu aos 10 compromissos do Fórum de Empresas e Direitos LGBTI+.
Sob gestão de Lais, foi implementado um censo exclusivo de diversidade. A edição 2025 apontou que 16% das lideranças são LGBTQIA+, sendo que pessoas trans correspondem a 1%.
Para aumentar as taxas, a empresa lançou neste ano o LGBTalent+, programa de mentoria para desenvolvimento de líderes exclusivo para membros da comunidade.
Cibele conta que a sua transição, o fato de conseguir ser promovida e a existência de programas afirmativos, têm ajudado outras pessoas da empresa a se autodeclararem trans. Mobilizadora da causa, ela formou uma rede de acolhimento dentro da empresa.
E mais pessoas estão chegando. Uma delas, que integra a equipe de Cibele e está na sua primeira experiência com registro em carteira de trabalho, foi recentemente promovida.
“Precisamos tirar as pessoas trans dos bastidores e colocá-las na frente do cliente”, diz ela.
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VALIDAÇÃO DA ALTA LIDERANÇA É FUNDAMENTAL PARA PAUTA EVOLUIR
Uma recente pesquisa com 83 signatárias do Fórum de Empresas e Direitos LGBTI+ mostrou que 48% das empresas possuem ações e estratégias focadas na carreira de pessoas LGBTI+. Dentre os programas mais comuns, estão os de mentoria (75%), capacitação técnica (35%) e desenvolvimento para posições de liderança (25%).
Para Ricardo Mota, diretor de Gente e Gestão da Rede Américas, formada a partir de Dasa e Amil, com 34 mil funcionários, as empresas que não olham para a diversidade perdem mercado por não entenderem a complexidade da sociedade.
“Investir em educação, buscar conhecimento e falar sobre diversidade ampliam a visão da empresa, o que é fundamental para a sua sustentabilidade.”
Ricardo Mota, diretor de gente e gestão da Rede Américas.
Com mais de 25 anos de carreira, Ricardo afirma que, para os programas de diversidade funcionarem, deve existir um compromisso real e de todos com as pautas, desde a diretoria até os funcionários operacionais. No entanto, o especialista diz que ainda sente essa lacuna em grande parte das empresas.
“As empresas estão tentando e, algumas, realizando muito trabalho bacana. Mas as organizações são formadas de pessoas”, afirma ele. “Se faltar atitude individual e se todos não estiverem com o mesmo objetivo, a empresa não conseguirá evoluir”.

De acordo com Fernando Vilela, gerente de sustentabilidade da locadora de veículos Localiza, a empresa é um caso de que o exemplo veio de cima. Ele conta que o programa de diversidade e inclusão nasceu em 2020, já com o apoio do CEO.
A chancela da alta liderança fez com que a agenda evoluísse rapidamente. Foram estabelecidas seis áreas de atuação: equidade de gênero, inclusão de pessoas LGBTI+, equidade racial, apoio a pessoas em situação de refúgio, inclusão de pessoas com deficiência e valorização de profissionais 50+.
Na sequência, cada tema ganhou um grupo de afinidade, com autonomia para realizar atividades. Além dos líderes, cada grupo tem padrinhos e madrinhas, que são pessoas que ocupam cargos de gestão estratégicos da companhia.
Ele explica que a alta liderança traduz a estratégia para os grupos, que, por sua vez, a materializa em ações práticas, com demandas e sugestões de melhorias. “Com as partes alinhadas, as lideranças criam, com agilidade, soluções com outras áreas da empresa”, diz ele.
Deu certo. No primeiro ano do programa, a Localiza recebeu o prêmio de Diversidade e Inclusão da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje).
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DIVERSIDADE DEVE SER INSTITUCIONALIZADA
Empresas que permitem que os trabalhadores sejam quem realmente são e que comprovem que algumas características não são um impeditivo para uma carreira bem sucedida, conseguem entregar ambientes verdadeiramente inclusivos.
Ao olhar o relatório Experiências de Trabalho de Pessoas LGBTQIA+ no Brasil, podemos ver o copo meio cheio: 78% dos entrevistados afirmaram não sentir a necessidade de esconder sua identidade no ambiente de trabalho. Por outro lado, há o copo meio vazio: 53% relataram que piadas ou comentários negativos sobre LGBTQIA+ são frequentes no trabalho.
Para Ricardo, embora tenhamos avanços pontuais, os ambientes de trabalho ainda não são acolhedores para uma pessoa LGBTQIA+. “Mesmo nas empresas mais engajadas, se você olhar no recorte, as pessoas estão trabalhando com sua identidade reconhecida, mas em quais posições?”, questiona ele.
Embora reconheça que é positivo que mais pessoas estejam afirmando sua identidade, a autodeclaração cria um rótulo em ambientes pouco inclusivos. Isso faz com que muitas pessoas LGBTQIA+, principalmente as que estão em cargos de gerência ou superiores, ainda prefiram esconder a sua identidade.

Com livre trânsito na área, Ricardo pontua que há vários executivos LGBTQIA+ que não se assumem, pois os ambientes estão longe do ideal. Além disso, mudanças corriqueiras nas empresas podem causar novos imbróglios.
Para ilustrar a situação, Ricardo conta uma experiência pessoal, vivida quando era um jovem gerente de projetos em um banco. Embora realizasse trabalhos relevantes e fosse elogiado, em um dos processos de fusão do banco, ele ouviu de um gestor: “o pessoal gosta muito de você, quer investir na sua carreira, acha que você pode ser um futuro executivo, mas o seu jeito é diferente…”.
“Aquele ‘mas’ acabou com a minha vida”, relembra ele. Na época, mesmo sem ter perspectiva de outro emprego, Ricardo pediu demissão.
Para mitigar esses riscos, é necessário que as ações de diversidade e inclusão integrem as políticas formais da empresa, chanceladas pelas instâncias máximas, como conselhos de administração.
Na Accor, Lais explica que a maturidade tem sido atingida por meio de muita sensibilização e conscientização para todos os funcionários, além de regras rígidas sobre discriminação.
Nesse sentido, é importante que quem conduz as formações receba uma preparação para acolher diferentes contextos. Assim, não há espaço para deslegitimação de líderes que fazem parte de grupos sub-representados e nem para apartá-los da rotina típica de um cargo de liderança.
“Cada pessoa vivenciou uma trajetória muito particular e a gente entende que essa é nossa riqueza. Não queremos colocar as pessoas em caixinhas.”
Laís Souza, gerente de Diversidade, Equidade e Inclusão da Accor.
Apesar das dificuldades ainda presentes, Ricardo vê um futuro promissor para pessoas LGBTIA+ no mercado de trabalho e entende que as empresas são parte da sociedade que em processo de transformação. Sobrevivente dos anos 80 e 90, ele, que se considera otimista, finaliza: “Viver em sociedade não é sobre imposição. É sobre conquistar direitos e fazer valer os nossos direitos”.
Fotografias: divulgação.







