Quem utiliza uma das quatro linhas do Metrô de São Paulo, logo no começo da tarde, uma hora ou outra, escuta ecoar pelos vagões o baião de Luiz Gonzaga e músicas do cancioneiro popular.

O som vem de violão, triângulo, pandeiro e voz. Em São Paulo, músicas como a do Rei do Baião é um prato cheio para o público, já que a cidade tem o maior contingente de nordestinos fora do Nordeste. Nesta hora, é fácil perceber muitos passageiros que deixam seus smartphones de lado e param para assistir e se emocionar com os músicos.

Na voz, na palma das mãos e no dedilhar das cordas, quem comanda o show é o Vagão Livre, coletivo de artistas que se apresenta dentro dos trens.

A proposta é sensibilizar os passageiros por meio da música e, também, conseguir alguns trocados no chapéu que é passado ao final das apresentações.

A atuação da banda formada por músicos e palhaços também é política, uma vez que permite que todos os públicos se conectem com a arte. Diariamente, 3,7 milhões de passageiros utilizam alguma linha do metrô de São Paulo. De acordo com Letícia Mariano, uma das fundadoras do Vagão Livre, esse é um ótimo público-alvo.

“A rotina capitalista é maçante. As pessoas perdem o dia inteiro com o trabalho e o transporte público. No final de semana, muitas não vão ao teatro, ao circo ou a um show. Elas querem descansar, com toda razão. Ocupar os vagões é permitir que a arte acesse essas pessoas democraticamente, tenham elas condições financeiras ou não para contribuir com o show”

ARTISTA NÃO VIVE DE BRISA

Foi justamente para gerar renda que Leticia e Vitória Carine, outra fundadora do Vagão Livre, resolveram apresentar números improvisados de palhaçaria no metrô, ainda em 2017.

Elas são atrizes e palhaças. Leticia faz licenciatura em arte-teatro na Unesp e Vitória está no programa de Formação Para Jovens Palhaços do Doutores da Alegria. Ela também toca pandeiro.

Trabalhando de segunda a segunda, por quatro horas, elas surpreenderam-se com o quão recompensador era o trabalho, tanto em termos financeiros como emocionais.

Embora não revelem as cifras, elas afirmam que a grana do chapéu cobre os custos de vida.

Mesmo quando as apresentações não são tão lucrativas, o metrô possui uma segunda utilidade: uma plataforma de publicidade.

Cantar e encenar sob os trilhos abriu as portas para elas participarem de peças em outras companhias de teatro. Vitória ingressou na Cia do Asco e Letícia no Coletivo Pareia.

Assim, elas conseguiram reduzir a carga horária de apresentações no metrô para quatro dias na semana.

Já a ideia de criar um coletivo nasceu pouco tempo depois das primeiras experiências. A intenção era promover parcerias e intercâmbio com outros artistas. Nascia o Vagão Livre como o coletivo que é hoje, com a participação de outros 15 intérpretes, em sua grande maioria músicos e palhaços, na faixa etária entre 21 e 25 anos.

Além das fundadoras, também participam do grupo Guilherme Basilio Geraldo, Nathália Aparecida dos Santos, Caio César Teixeira, Luana Caroline Pereira, Mabe Nascimento, Giovanna Guedes, Ana Clara Travassos, Sthefe Julie Souza da Cruz, Juliana Barros da Costa, Giovanna Paixão, William de Barros, Carollini Diabollini e Filipe Farinha.

Carol e Filipe costumam se apresentar nos vagões do metrô de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, e conheceram o Vagão Livre numa visita a São Paulo. Hoje, sempre que ambos estão pela cidade, participam das ações do coletivo, como a que aconteceu no começo de maio, quando foram feitas as fotos que são exibidas nesta reportagem.

Atualmente, Vitória trabalha com a música brasileira, enquanto Letícia prefere a palhaçaria. Os “ensaios” acontecem nos intervalos de aulas, uma vez que muitos integrantes estudam nas mesmas escolas de arte. Minutos antes de entrarem no vagão, treinam mais um pouquinho e calibram a batucada.

PRÓXIMA ESTAÇÃO: HIP HOP

Fazer uma apresentação no metrô da maior cidade da América Latina pode ser tão emocionante quanto subir aos palcos de uma sala de espetáculo. São 232 trens, que somam cerca de 1.400 vagões, que transitam em 96 quilômetros de trilhos (extensão bem menor do que os de outras metrópoles, diga-se de passagem).

O breaking do Hip Hop no Vagão é um dos shows que conquistam esses milhares de corações paulistanos. Fundado em 2018, o coletivo faz apresentações de dança ao som de rimas e melodias do universo do rap.

O estilo energético, acrobático e original sai dos corpos de Arthur Doná (Zeuz), Gustavo Bianchi (Guh), Emerson Silva (Emersu), Diego de Jesus (Training), Denis Alves (Smoked), Denilson Alves (Baby), Kennedy Gomes (Pikeno), Luiz Paulo (Lula), Irven Olveira (Irflow) e Willian de Soisa (Uiu).

Ao adentrarem no trem, os b-boys, como são chamados os dançarinos de breaking, ligam uma potente caixinha de som, giram e deslizam pelo chão e usam os ferros de apoio para fazer passos no ar.

Fotos e vídeos feitos por passageiros são rotina e ajudam a divulgar o trabalho.

Em menos de um ano de trilho, eles já somam mais de 11 mil seguidores no Instagram.

Mas a beleza das apresentações ignora os desgastes físico e mental aos quais eles estão expostos.

“Corremos o risco de nos machucarmos ao fazer um show em um ‘palco’ que se movimenta em alta velocidade e que pode parar a qualquer momento sem aviso prévio”, afirma Pikeno.

Além disso, a dança, quando exercida como profissão, é de uma extrema exigência física e psicológica, requer disciplina e muita entrega pessoal. Dançarinos, em geral, têm carreiras curtas, muitas vezes encerradas abruptamente devido à uma lesão.

Mas “quem vem das ruas não joga fácil”. Para o Hip Hop no Vagão, os shows nos trens é a maior garantia de dinheiro no bolso. Recentemente, devido ao sucesso entre o público, eles foram convidados para outros projetos.

Num evento da própria ViaQuatro, empresa responsável pela Linha 4 do Metrô de São Paulo, o coletivo realizou um workshop e um show para o Dia Internacional de Dança, comemorado em 29 de abril.

Nos próximos dias, o Hip Hop no Vagão vai participar do festival Periferia Preta, na Fazenda da Juta, zona leste paulistana.

Valorização da arte e cultura, especialmente a periférica, é uma das principais reivindicações. Uiu manda a ideia:

“Nosso sonho mesmo é ver a nossa arte ser reconhecida no Brasil como é no exterior, com políticas de incentivo, estrutura e até competições para acabar com a situação de precariedade a qual os artistas estão expostos”

Apesar das dificuldades, Pekeno afirma que a dança é o refúgio social para quem faz e para quem vê. Uma vez, quando já tinham terminado o expediente, eles viram uma mulher chorando no vagão. Eles foram até ela e fizeram uma dança exclusiva.

“Arrancamos um sorriso dela”, diz ele. “Vai ver não suportam a gente por esses sorrisos que conseguimos tirar dos passageiros”.

ARTE PROIBIDA

Tocar música nos vagões é proibido pela Companhia do Metropolitano de São Paulo.

Segundo o Metrô, assim como o comércio ambulante e os pedintes, os artistas incomodam a viagem dos usuários e interferem na operação dos avisos sonoros do sistema, bem como na circulação.

A companhia orienta ainda os passageiros a denunciarem as apresentações via SMS e seus funcionários são autorizados a retirar os artistas de suas dependências.

Por motivos de repressão, os shows só iniciam após o sinal de fechamento das portas e as apresentações são curtas: duram até oito minutos e são intervaladas de acordo com as paradas nas estações.

Os artistas também mudam frequentemente de estações, apesar de preferirem aquelas de maior movimentação, até para conseguirem se camuflar no meio da multidão. Alguns tem até grupo de WhatsApp para avisar sobre blitz.

Para Vitória, os seguranças do Metrô têm assuntos mais importantes para cuidar do que recolher artistas das estações.

“Sabemos que os seguranças são orientados a reprimir os artistas, mas, se os agentes não tivessem essa atribuição, poderiam dar maior atenção a ocorrências que realmente importam, como os casos de assédio às mulheres”

Desde a década de 1970, o Metrô de São Paulo tenta implantar projetos artísticos em suas estações. A ideia foi seguir tendências vindas de outros países, onde espaços de mezaninos, jardins internos e externos, corredores e plataformas passaram a ser entendidos como espaços propícios às intervenções visuais artísticas.

Essa inserção, contudo, sempre foi tímida (devido à falta de interesse do Metrô).

Começou com a instalação permanente de algumas obras plásticas (esculturas, murais, painéis, pinturas, fotografias, entre outros), algumas, inclusive, de autoria de artistas de renome como Tomie Ohtake.

Aos poucos, foram acrescentadas apresentações esporádicas de concertos musicais em pequenos palcos montados dentro das estações.

Hoje, para realizar manifestações artísticas dentro das dependências do Metrô, é necessário que os grupos apresentem propostas de projetos à companhia.

No entanto, Vitória critica o modelo e aponta a razão dos artistas preferirem ficar na ilegalidade:

“O projeto ‘Músicos de Rua’ do Metrô, por exemplo, contempla um número limitado de artistas, para trabalharem uma vez na semana, fora dos vagões, em locais pré-estabelecidos e ganhando um cachê no valor de R$ 150. Querem que a gente brigue entre nós para sobreviver com R$150 por semana?”

RÁDIO DUVIDOSA

Na tentativa de impedir as manifestações artísticas dentro dos trens, que só cresceram com o aprofundamento da crise econômica, o Metrô implantou em julho de 2018 o “Metrô+Música”.

O projeto transmitia uma playlist de 200 músicas de jazz, MPB, bossa nova, música clássica, entre outros gêneros.

O serviço era gerido pelo Instituto de Cultura e Cidadania (Icult), a um custo mensal de R$ 39 mil (eita radinho caro).

A sonorização acontecia apenas nos vagões das linhas 1–Azul, 2–Verde e 3–Vermelha.

Logo no mês de estreia, o serviço foi motivo de 72,8% das reclamações feitas por passageiros.

Em fevereiro, o Metrô anunciou o fim do projeto.

Agora, os verdadeiros artistas dos vagões aguardam uma lei que regularize a situação e ponha fim à repressão do Metrô de São Paulo.

Ano passado, o estado do Rio de Janeiro aprovou uma lei referente ao trabalho de artistas nas estações (não nos vagões).

Por outro lado, os músicos e dançarinos consultados por Emerge Mag não querem uma lei que imponha restrições severas sobre quais estações, dias da semana e horários as apresentações podem acontecer. Isso poderia levar à criação de disputas de locais e segregação do público.

Enquanto a descriminalização não vem, eles desafiam quem os quer bem longe com as armas que têm: cultura e arte, muita arte.

IMAGENS: João Grijo, com edição de Rogério Henrique.