Na política brasileira, as pobres criaturas somos nós, mulheres — sobretudo negras, indígenas, LBTQIAPN+ e periféricas. Comecemos com a história do sufrágio feminino nacional, que completou 92 anos em 24 de fevereiro.
As mulheres brasileiras conquistaram o direito ao voto em 1932, com a instituição do Código Eleitoral pelo decreto 21.076, do então presidente Getúlio Vargas. No último sábado, 24 de fevereiro, comemorou-se os 92 anos dessa conquista. Mas a luta pela participação política começou algumas décadas antes.
Em 1910, conhecida como “mulher diabo” por conta de sua militância feminista, Leolinda Daltro fundou o Partido Republicano Feminino e, em 1917, liderou a primeira passeata pelo direito das mulheres para votar e serem votadas. Apesar da influência de Leolinda, foi Bertha Lutz, zoóloga de profissão, a principal liderança do movimento sufragista brasileiro.
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Depois de representar o Brasil na Assembleia Geral da Liga das Mulheres Eleitoras, nos Estados Unidos, a cientista e ativista feminista fundou, em 1922, a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, entidade que liderou a luta.
Outros nomes que valem conhecer para entender a história das mulheres brasileiras e a política são de Carlota Pereira, primeira deputada mulher da história do país, eleita em maio de 1933; da advogada sindicalista Almerinda Gama, a única e primeira mulher negra a participar e votar como delega na Assembleia Nacional Constituinte de 1933; Antonieta de Barros, a primeira parlamentar negra, reconhecida pela militância feminista por uma educação revolucionária e universal, entre outras.
Influenciadas pelo movimento sufragista, sobretudo francês e inglês, elas criaram um sufragismo a la brasileira, com reivindicações que iam além do direito de votar e serem votadas. O que acontece é que, apesar da conquista inegável, o direito ao voto se inicia de forma facultativa. O princípio ainda era a exclusão. As mulheres que podiam votar eram aquelas tuteladas por seus maridos ou por empregos na máquina pública.
O avanço real do direito das mulheres no Brasil (e no mundo) acontece alguns anos depois, em 1945, com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) e o princípio da igualdade, estabelecido no documento da Declaração Universal dos Direitos Humanos. A onda feminista da década de 1970 consolida e amplia os direitos das mulheres, mas é sabido que a luta ainda não terminou.
POBRES CRIATURAS: INSUBORDINAÇÃO AO CONTROLE MASCULINO
Se você esteve na internet nas últimas semanas, deve estar se perguntando o porquê da referência no título ao filme indicado a onze estatuetas do Oscar, Pobres Criaturas (2024), com direção de Yorgos Lanthimos e protagonizado por Emma Stone, que interpreta a personagem Bella Baxter. Não é só um trocadilho que tomo emprestado para falar da ainda triste e insuficiente participação das mulheres na política brasileira.
Assisti ao filme no mesmo dia em que comecei a pesquisa para esse texto, então Berthas, Leolindas, Almerindas, Carlotas e Antonietas ainda ressoavam na minha mente. Essas foram mulheres feministas significativas para nossa história, que tinham em comum a insubordinação ao controle masculino e pouco apreço às normas sociais vigentes do início do século XX. Justamente o que vi na tela do cinema.
No filme, Bella Baxter é a criatura e Godwin Baxter (Willem Dafoe), médico e cientista, seu criador. O personagem que referencia Victor Frankenstein, do romance de autoria de Mary Shelley, encontra o corpo de uma mulher suicida grávida e a reanima, mas com um porém: troca o cérebro da mulher pelo do bebê que ela carregava.
Assistimos a Bella Baxter se desenvolvendo à luz e apesar do controle masculino. O corpo e sua existência irregular e insólita — ao mesmo tempo mãe e filha, mulher e criança — é colocado enquanto campo de observação, de experimentação e subjugação ao longo do filme.
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O amor masculino, de pai e criador, do marido prometido Max McCandles (Ramy Youssef) e do amante Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo), me pareceu ser doado a ela quase como uma gentileza, uma benevolência pela sua “condição”. A ironia, a indiscrição e a falta de apreço pelas normas sociais de Bella Baxter são apaixonantes, enlouquecedoras e divertidas, mas a personagem demonstra como nada devemos a quem nos olha dessa forma. Ela chama sexo de “pulos furiosos” e se entrega já mais adulta aos prazeres experimentais da mente e da política, como a filosofia e o socialismo, e mais diversas experiências sexuais. Em certo ponto do filme, vibramos com a fala “Eu não sou território!”, que a personagem brada ao ex-marido Alfie (Christopher Abbott).
O paralelo que cintilava na minha cabeça sobre as mulheres brasileiras e a política e Bella Baxter era sobre como avançamos nos direitos, tal qual Bella sai ao mundo para explorá-lo, mas esbarramos ainda no controle masculino e patriarcal que insiste e, o pior, consegue nos limitar.
Em 2022, por exemplo, somente 91 mulheres foram eleitas deputadas federais, o que corresponde a 17,7% da totalidade das 513 cadeiras disponíveis. Nas Assembleias Legislativas dos estados é parecido: apenas 18% dos parlamentares são mulheres.
FEMINISMO PARA OS 99%
E vai além de participação e representação. Estamos assistindo, ao vivo, como as pautas feministas, que movimentaram e causaram tantas lutas no século passado, estão sendo usurpadas pelo capital. Tentam nos individualizar ao colocar que a experiência mais feminista possível é alcançar cargos altos e ganhar muito dinheiro, ainda que isso mantenha a exploração de mulheres, sobretudo negras.
“Nossa resposta ao feminismo do faça acontecer é o feminismo impeça que aconteça. Não temos interesse em quebrar o telhado de vidro enquanto deixamos que a ampla maioria limpe os cacos. Longe de celebrar as CEOs que ocupam os escritórios mais luxuosos, queremos nos livrar de CEOs e de escritórios luxuosos”, afirmam Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser, no livro Feminismo para os 99%: um Manifesto (Editora Boitempo, 2019).
Há ainda as representações que nada significam e mais reforçam estigmas e retrocessos, como a da ex-ministra e atual senadora Damares Alves. As conquistas — incluindo o direito ao voto — foram muitas, mas insuficientes. Não queremos mulheres por mulheres na política, queremos um feminismo para os 99%, que inclua e lute pelas mulheres de todo o tipo: negras, indígenas, lésbicas, trans, travestis, pobres, com deficiência, palestinas, entre outras.
“O feminismo que temos em mente reconhece que deve responder a uma crise de proporções monumentais: padrões de vida em queda livre e desastre ecológico iminente; guerras desenfreadas e desapropriação intensificada; migrações em massa enfrentadas com arame farpado; racismo e xenofobia encorajados; e revogação de direitos – tanto sociais como políticos – duramente conquistados”
Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser, em Feminismo para os 99%
Que nos preparemos com isso em mente para, daqui uma semana, lembrar e integrar a luta feminista por emancipação no 8 de março, Dia Internacional das Mulheres. As pobres criaturas somos nós, mulheres, mas temos a capacidade e as ferramentas para deixarmos de ser.