*Texto escrito em linguagem neutra de gêneros gramaticais.
Periférico, limítrofe, fora da lei, delinquente. Essas são algumas definições da palavra “marginal”, de acordo com o dicionário Aurélio. Mas, assim como a sociedade, os termos também podem ser ressignificados. Para as dezenas de pessoas que se reúnem todas as primeiras quintas-feiras do mês para declamar poesia na frente do Mosteiro São Bento, lugar icônico da cultura urbana de São Paulo, “marginal” é um conceito positivo (“subiu, cê nem viu”).
Há um ano, nascia o Slam Marginália, competição de poesia falada exclusiva para pessoas trans e não bináries. Além de um ambiente de arte, o Marginália é um local de troca, fortalecimento, sexualidade, afeto e resistência para corpes dissidentes. Ali, as pessoas se sentem acolhides e criam rupturas em uma sociedade que frequentemente as excluem. Bibi Abigail, uma das fundadoras do projeto, comenta:
“As pessoas trans não tem trânsito na sociedade tradicional. Elas não têm espaço para se pegar, socializar, fazer amizade. Por sua vez, no Marginália, elas podem usufruir de todo esse convívio social sadio para a mente e o corpo”
Como a Emerge já citou em outras reportagens, o Brasil figura no topo do ranking de assassinatos de pessoas travestis e transexuais no mundo. Além disso, segundo estimativa da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 90% dessas pessoas ainda têm a prostituição como sua principal forma de sustento.
Para Júlia Bueno, cofundadora do Marginália, é impossível desvincular o projeto de questões sociais e de exclusão da comunidade trans. O Marginália também é um ato político. “Uma das potências do Marginália é ser um lugar onde nos reunimos, nos amamos e nos elogiamos. Aqui, a nossa identidade de gênero não é um problema”, afirma ela. “Os encontros também servem para promover cuidados com saúde e inclusão social.”
FORA DA NORMA
O slam surgiu como um grito da periferia, assim como o rap, e tem ganhado popularidade no Brasil nos últimos anos. Normalmente, os temas são políticos e abordam raça, classe e gênero.
Tanto Bibi quanto Julia contam que a ideia de criar o Slam Marginália, em meados de 2018, veio de uma necessidade de construção de um espaço para corpes dissidentes. Inicialmente, o grupo frequentava a Batalha Dominação, competição de rima para mulheres cis e homens trans, que acontece todas as terças-feiras, também na São Bento.
“Mesmo sendo um espaço muito potente, havia a problemática do conceito de ‘mulher’ se basear em útero e vagina, o que incomoda a população trans”, explica Julia.
Bibi complementa ao afirmar que o movimento do slam ainda é muito hegemonizado por pessoas cis e hétero.
Em contrapartida, elas frequentavam o Transarau, evento cultural destinado às pessoas T. Com a demanda, elas pensaram em dar visibilidade na cena do slam para poetes trans que não conseguiam competir nas outras batalhas.
Já o nome Marginália foi pensado como algo que dissesse respeito as interioridades do grupo. De acordo com Bibi, além da “margem” do gênero – por serem corpes trans – também há questões de classe e de raça, uma vez que o evento é feito e voltado para pessoas pretas de quebrada. “O sufixo ‘alia’ tem uma conotação pejorativa”, diz Bibi . “Então, a gente se apropria para inverter e dar uma valoração positiva.”
Hoje, além de Bibi e Julia, o Marginália possui mais dois organizadores: Caru e Preto Téo.
REPENSANDO A POESIA
Geralmente, os slams são vistos como campeonatos de poesia, onde os participantes têm até três minutos para apresentarem sua performance, com declamação de um texto de autoria própria (escrito ou criado na hora) sem se valer de acompanhamento musical.
Nas edições livres do Marginália, es participantes se inscrevem na hora do microfone. Por sua vez, o júri é composto por voluntáries da plateia – é preferível que elus também sejam de gênero dissidente. A cada rodada, es participantes competem entre si e quem recebe as maiores pontuações avança para as próximas fases. Notas máximas são acompanhadas de um estrondoso coro de “beroooo”. Notas menores fazem a plateia gritar “uó”.
Além de todos benefícios intangíveis, e ganhador do slam recebe um prêmio material: uma sacola com doações da plateia, que pode disponibilizar qualquer coisa que tiver na hora, como alimentos, bebidas, cigarros, preservativos e obras de artes, como um zine autoral.
Embora na maioria das vezes o Marginália se organize conforme essa estrutura, Julia comenta que um dos maiores desafios é não cair no ostracismo e reproduzir espaços tradicionais. O Marginália quer mesmo é reinventar e quebrar as regras. “Houve edições que quem ganhou foi a pessoa que tirou a menor nota”, diz Júlia. “Queremos valorizar outros tipos de escritas e narrativas”
HÁ UM ANO CAUSANDO
A edição de 1 ano do Marginália, que aconteceu no início de setembro, teve bolo, parabéns e muita poesia. A festa contou com um pocket show de vogue de Zaila, da Casa de Candaces, e discotecagem de Eric Oliveira, fundadora da festa Chernobyl. Aliás, geralmente, todas as edições do Marginália acabam em festa ao ar livre – lembra que falei de pegação? Então, a festa é a hora.
Ao longo desse primeiro ano, Bibi e Julia visualizaram uma possibilidade que não existia antes. Julia diz:
“Nem a gente esperava tamanha conquista. Pessoas trans têm uma expectativa de vida baixa. Então, acabamos não pensando à longo prazo. Mas ver o crescimento do slam e acompanhar cada vez mais pessoas se unindo é incrível. Conseguimos criar um espaço onde as pessoas trans se sentem importantes”
Nos últimos meses, o Marginália foi convidado para fazer edições especiais em espaços privados e públicos, como o Centro Cultural da Juventude, o Centro Cultural da Brasilândia, a Biblioteca Mário de Andrade e unidades da rede Sesc. Grande parte das fotos que ilustram essa reportagem foi feita durante um evento no Sesc Belenzinho. Essas edições permitem que o projeto atinja outras realidades típicas das periferias da cidade.
A expansão territorial do Marginália ganha contornos ainda mais expressivos devido ao cenário político atual. As existências trans nunca foram contempladas em sua plenitude em governos passados, mas, agora, o cenário está pior. Desde a ascensão do governo do presidente Jair Bolsonaro, que tomou posse no início de 2019, movimentos de resistência, como o LGBTQI+, têm fortalecido as lutas pelos seus direitos. Com o Slam Marginália, não foi diferente.
Segundo Bibi, desde o final do ano passado, elus sentiram que muitas pessoas começaram a procurar o espaço do Marginália para desabafar e criar redes de coletividade e afeto. Para ela, a ascensão de um governo declaradamente racista, xenofóbico, transfóbico, burguês e elitista faz com que esses eventos fiquem cada mais necessários. Assim, seguem se aquendando cada vez mais.
SERVIÇO
Slam Marginália
Toda primeira quinta-feira do mês, a partir das 19h.
No Largo São Bento (na frente da banca de jornal).
Não esqueça de levar presentes para compor o prêmio do Slam.
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FOTOGRAFIAS: Kalinca Maki e Nu Abe