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Pretas nas letras

28/07/2023

No mês da mulher negra e latino-americana, jovens escritoras relatam obstáculos a mais na literatura independente

#Emergereposta: por Georgia Santos originalmente publicado por Revista AzMina.

Nos anos da escola, e até na universidade, as leituras costumam seguir uma extensa lista de autores homens, brasileiros ou não, a maioria brancos. A Academia Brasileira de Letras, fundada em 1897, até hoje só teve oito cadeiras ocupadas por mulheres, todas brancas entre elas, reflexo de como a luta das mulheres negras por espaço na literatura é contínua. 

Apesar do merecido sucesso que tem atualmente, a escritora Conceição Evaristo lutou para ter o seu trabalho reconhecido. Conciliando o emprego como empregada doméstica com a escrita, Conceição costumava distribuir o seu trabalho de forma independente. Hoje, ela é referência para escritoras negras que permanecem longe do mercado editorial.

A porcentagem da população brasileira (56%) que se autodeclara negra (preta ou parda) não se repete em representatividade na política, nas universidades, além de outros campos profissionais, como o mercado editorial. Mesmo entre o público leitor voraz, é difícil encontrar afinidade com autoras negras, e até mesmo obras que retratam essas personagens. Valorizar e ampliar as vozes das mulheres negras na literatura é garantir que suas histórias sejam contadas.

Os debates sobre raça e gênero acenderam o alerta do público sobre as obras que consome e se há identificação com elas. Exemplo recente disso é o filme A Pequena Sereia, que teve a atriz Halle Bailey no papel de protagonista, levando para as telas uma princesa negra. Já a Marvel lançará em 2024 a série Ironheart, cuja protagonista será vivida pela atriz Dominique Thorne. A personagem chegará ao universo Marvel para se tornar a “detentora do manto” do Homem de Ferro, um dos heróis mais famosos da companhia.

AUTORAS INDEPENDENTES

A escritora Arquelana explica que, na lista de e-books mais vendidos da Amazon, uma das maiores plataformas para autores independentes hoje, dominam os livros de romance, mas ainda falta representatividade, que não está necessariamente ligada aos protagonistas ou autores.

Autora de romances LGBTQIAP+, ela publicou de forma independente o best seller Realidade Paralela e Aparentemente Noivos, além de Querida Penélope, pela editora Qualis, e Operação Paddock, em pré-venda pela Editora Paralela. 

Tayana Alvez, a Tay, autora do best seller digital O caminho que me leva a você – 25º mais vendido da Loja Kindle, 1º na categoria Esportes e 2º na categoria Jovens e Adolescente – concorda. Ela aponta a necessidade da diversidade racial em todo o processo editorial, da seleção e aquisição de manuscritos até a edição, ilustração e divulgação.

Além disso, acrescenta que mesmo em obras com protagonismo branco, personagens secundários negros podem atrair a atenção do público.

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Para Gabriela Costa, socióloga e apresentadora do podcast Canône Invertido – que aborda a literatura brasileira entrevistando  autoras e autores negros – há grande crescimento do interesse de editoras por profissionais diversos, movido pelas demandas do mercado e cobrança por representatividade.

Ana Rosa, autora independente da categoria Jovem Adulto e assistente de marketing na Editora Record, lembra que o mercado literário tradicional sempre foi composto majoritariamente de autores brancos. Restava aos autores negros a publicação independente. Ela concorda que é crescente a percepção das editoras e do público pela necessidade de ampliação de mercado.

Bettina Winkler é autora de fantasia independente e também já foi publicada pelas editoras Qualis e Harlequin. Acumulando trabalhos como roteirista, tradutora e preparadora de textos, ressalta como o mercado de fantasia é composto por uma maioria de homens, e que embora muito se fale contra as protagonistas “padrão” – branca, magra, etc. – não há a procura efetiva de obras com representatividade. “Autores independentes precisam massificar seus projetos de marketing para se estabilizarem no mercado”.

COM MEDO DE ATAQUES, AUTORAS ESCOLHEM ANONIMATO

Em nome da receptividade, algumas autoras negras independentes têm optado por retratar personagens brancos, mais comerciais, e sofrem críticas por isso, relata Tayana Alvez. “Nos cobram de um jeito ou de outro”. Artistas das palavras também enfrentam o dilema comum do mundo adulto: “fazer o que amo ou pagar as contas?”

Além disso, a mistura entre a baixa aceitação de personagens não-brancos e a cobrança por histórias mais “militantes” coloca algumas pequenas escritoras nas sombras, opina Arquelana. Ela se refere à grande quantidade de jovens negras que escrevem sob pseudônimos para fugir de possíveis ataques racistas na internet. Para Bettina Wrinkler, “é inimaginável o tamanho da violência que as autoras que escolhem o anonimato passaram para tomarem esta decisão (de não aparecer)”.

PRESSÃO POR REPRESENTATIVIDADE FUNCIONA

Diretor de diversidade da Companhia das Letras, Fernando Baldraia, relata o aumento das buscas por livros com personagens negros após o homicídio de George Floyd, em 2020, nos Estados Unidos. O movimento por defesa das vidas negras (Black Lives Matter) transbordou mundialmente, também, para a literatura.

Outros fatores movimentaram o setor: a pandemia de Covid 19, e o crescimento do nicho de literatura no TikTok e no Instagram. Ele acredita, entretanto, que ainda há resistência por parte do público em relação a obras afrocentradas. 

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Pedro Almeida, sócio da Faro Editorial e ex membro do conselho do Prêmio Jabuti, argumenta que a presença de profissionais negros em todo o processo editorial é crucial para garantir uma representatividade autêntica. “A ausência dessas pessoas pode levar a uma representação estereotipada e superficial dos personagens negros, reforçando preconceitos”. 

Foi o que aconteceu no lançamento da primeira edição de Cidade da Lua Crescente: Casa de Terra e Sangue no Brasil, da autora Sarah J Maas, número um em vendas na lista do The New York Times. O selo Galera Record pecou na tradução chamando, por exemplo, um personagem negro de pele escura de “cor de caramelo”. Os leitores cobraram e a treta ganhou a internet, chegando até à autora. Uma nova edição foi publicada, com revisão e tradução por um time de profissionais negros.

DIVERSIDADE PRECISA SER HORIZONTAL

Karine Ribeiro, autora de Secretária de Satã, que recebeu o IV Prêmio ABERST de Literatura, também traduz livros para grandes editoras. É dela a versão em português brasileiro de Em busca de mim, biografia de Viola Davis. Ela relata que a pressão por representatividade foi essencial para sua inserção, e de outras colegas negras, no mercado da literatura. 

Em crescimento constante, essa cobrança não abrange apenas protagonistas, mas também a presença de personagens afrodescendentes em todos os cenários. Com 10 anos de carreira Bettina Wrinkler se ressente da invisibilidade para autoras e autores negros. O fenômeno nasceu no mercado tradicional e se reproduz nas redes sociais, onde o novo público leitor se forma. “Só consegui a publicação tradicional após ter participado de um projeto da minha agência literária, Increasy, voltado para autores negros. Já tinha tentado entrar para o time de autores diversas vezes antes”. 

Percorrer o caminho entre a publicação independente e tradicional não é simples, e para muitas autoras, leva muito tempo. Mayara Nascimento, autora independente da fantasia A Ruína do Império, e dos romances de época Sonho de Liberdade e Entrelaçados pelo Destino, reforça que a procura do público por essas obras impacta diretamente o processo editorial. 

As rotas para ampliar o público são muitas. É possível buscar a publicação dos livros físicos em plataformas sob demanda, como a Uiclap, e as vendas diretas, que muitas autoras fazem pelo Correio. São alternativas à publicação com editoras prestadoras de serviço, que cobram mais caro e são pouco acessíveis para iniciantes. 

Este texto foi originalmente publicado Revista AzMina.

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Redação Emerge Mag

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