Com reportagem de Guilherme Schanner
As mulheres e a bicicleta têm, historicamente, uma relação de revolução e libertação. Ao longo do tempo, a “magrela” influenciou na transformação da vestimenta feminina — do espartilho apertado para calças e roupas mais confortáveis para pedalar — e foi um elemento importante para empoderar mulheres na ocupação do espaço público.
“Ela [a bicicleta] tem feito mais para emancipar as mulheres do que qualquer outra coisa no mundo”, afirmou a feminista americana Susan Anthony, uma das lideranças do movimento sufragista, no final do século XIX.
Centenas de anos depois, a bicicleta segue sendo um veículo de revolução e libertação para mulheres, mas desta vez também contra a invisibilização e o trabalho precarizado das entregadoras de aplicativo. Em cima de uma bike, o coletivo de delivery Señoritas Courier ou senhoritas correio, em tradução livre, entregam de tudo, inclusive sustentabilidade e empoderamento.
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A cooperativa entre mulheres cis e pessoas trans é uma iniciativa fundada por Aline Os, em 2017, que encontrou no veículo uma possibilidade para oferecer serviços de delivery de forma sustentável e feminista, com condições de trabalhos justas, indo de contraponto ao habitual do mercado.
Segundo uma pesquisa realizada pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e pela Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), o Brasil tem atualmente mais de 1,6 milhões de pessoas trabalhando como motoristas ou entregadores de aplicativos. Desses, apenas 5% são mulheres.
Apesar de precária como um todo, as condições de trabalho de entrega — que têm problemas como a baixa remuneração e altas cargas horárias — consegue ser ainda pior para elas, que enfrentam as dificuldades da categoria e os desafios inerentes ao gênero.
É o caso da tripla jornada de trabalho, insegurança nas ruas, vulnerabilidade ao assédio, a falta de acesso a banheiros e espaços de descanso no período menstrual, LBTfobia, entre outros pontos. E é por esse motivo que o Señoritas Courier existe. Elas oferecem um ambiente de trabalho cooperativo, justo e horizontal, com condições melhores que as encontradas no mercado.
MAIS DO QUE ENTREGAS
O trabalho de entregas surgiu para Aline Os em 2015 como uma revolução pessoal. O ciclismo foi um importante apoio na luta contra a depressão e, no orçamento, representou um complemento de renda e uma possibilidade de emancipação.
Em 2017, visando estender o “giro” de vida para outras mulheres — cis e trans — e pessoas transmasculinas, Aline fundou o Señoritas, munida do desejo de que esse fosse um ambiente de trabalho que entregasse muito além do rendimento financeiro.
Ao todo, o Señoritas Courier conta com dez membros, espalhadas pela capital paulista. Quase todas fazem as entregas, mas desempenham também outras funções, como logística, redes sociais e relações institucionais. No serviço de delivery, elas se organizam de forma coletiva e a designação de quem fará determinada entrega depende de fatores como disponibilidade e distância até o destino.
O Señoritas Courier não se limita, porém, a uma empresa de delivery. É também uma iniciativa de formação e empoderamento.
Enquanto não estão na rotatividade de entregas, elas exercem outros trabalhos e vivem experiências de formação que auxiliam na vida pessoal e profissional. Desde o final de 2020, por exemplo, o coletivo toca um projeto de inclusão digital que visa inserir as entregadoras em outros mercados.
O Señoritas também oferece um curso de mecânica para bicicletas e tem parcerias com a Prefeitura de São Paulo e com o Sesc (Serviço Social do Comércio).
“Nossa afirmação política é construir algo nosso e da forma que queremos e acreditamos, com pautas que são do nosso dia a dia”
Aline Os, fundadora do coletivo Señoritas Courier.
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CADÊ AS CLICLOVIAS?
Para Aline Os, o maior desafio é a falta de segurança, que ela atribui à carência de estrutura na cidade e à mentalidade pública que prioriza os carros. As ciclovias, pistas que usam elementos físicos, como grandes ou canteiros, para separar o ciclista dos automóveis, e ciclofaixas, quando a delimitação é feita apenas por pintura no chão, não chegam à periferia, por exemplo.
A cidade de São Paulo possui 722 quilômetros de vias com tratamento cicloviário permanente, de acordo com a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET). Desses, 690 são de ciclovias e os 32 quilômetros restantes são de ciclorrotas, espaços de uso compartilhado com pedestres e carros. A maior parte das vias se concentra na zona oeste, centro e centro sul, regiões mais ricas da cidade.
Aline Os, fundadora da Señoritas Courier
“A gente sabe muito bem o porquê as periferias não são atendidas por essa política pública”
Graças à cobrança e pressão da comunidade ciclista, em setembro a Prefeitura de São Paulo anunciou o Programa de Manutenção Permanente da Malha Cicloviária. O objetivo, segundo a CET, é “prolongar a vida útil das estruturas já implantadas, garantindo a regularidade das características técnicas, estruturais e de sinalização, assegurando conforto e segurança para quem pedala”.