“Somente aos 50 anos sai do modo sobrevivência e comecei a viver plenamente”

02/09/2025

A artista Lena Santos Máximo usa a poesia e artesanato para resgatar memórias afetivas e celebrar a ancestralidade negra e migrante.

Filha de costureira e criada sem energia elétrica na cidade de Sítio Novo, no interior do Rio Grande do Norte, Lena Santos Máximo, 54, aprendeu desde cedo a lidar com agulha e linha. À noite, sob a luz de um poste de iluminação pública, ajudava a mãe a fazer roupas encomendadas pela vizinhança. Devido às condições de sobrevivência no sertão, era comum o pagamento dos serviços ser em farinha, sabão ou o que o cliente tivesse na despensa.

Muito antes de revistas de moda falarem sobre upcycling — método de criação de produtos provenientes de resíduos industriais —, a mãe de Lena usava materiais não convencionais para desenvolver roupas. 

“Eu tinha vestidos feitos de tecido de guarda-chuva”, diz ela. “Eu me sentia linda”.

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Mais de três décadas depois, já vivendo em São Paulo e prestes a completar 50 anos, Lena foi novamente arrebatada pela criatividade. Após assistir um espetáculo do grupo musical Pastoras do Rosário, que celebra a ancestralidade e a resistência do povo negro brasileiro, Lena passou a criar bonecas artesanais. O objetivo era dar formas as memórias afetivas.

“Somente ao me tornar artesã passei a viver plenamente. Antes, vivia no modo sobrevivência. Com a arte, tive uma nova visão sobre mim e encontrei o meu valor”.

Lena Santos Máximo, artesã e poetisa.

Recentemente, a artista realizou sua primeira exposição individual. Guarda-Chuvas: da pobreza à nobreza, reuniu 25 bonecas criadas por Lena. Cada obra representa uma pessoa que existiu, ou ainda existe, na história da artista.

Por exemplo, Dona Ritinha era uma dançarina de forró de Sítio Novo. Maria Barrinha, a popular costureira amiga da matriarca. Padre Pierre representa a religiosidade católica no sertão potiguar. Dona Mirinha, a merendeira da escola.

SÃO PAULO É NORDESTINA

A pesquisa e criação de Lena é um manifesto de pertencimento e resistência cultural. As bonecas carregam histórias de religiosidade, tradições e costumes, principalmente de migrantes nordestinos.

Vale lembrar que, na segunda metade do século 20, a migração nordestina foi impulsionada pela industrialização paulista. Embora não se saiba com exatidão a quantidade de migrantes, estimativas apontam 30% da população da Região Metropolitana de São Paulo é formada por pessoas que vieram das regiões Nordeste e Norte do país.

Vejo as bonecas como contadoras de histórias. Representam mulheres e homens personagens da construção da minha identidade, parecida com a de outras migrantes nordestinas em São Paulo.”

Lena Santos Máximo, artesã e poetisa.

Uma das bonecas mais simbólicas é justamente a que representa a mãe de Lena, Elita Santos, a Dona Mocinha. Ao se tornar costureira em Sítio Novo, o objetivo da mãe era impedir que as filhas tivessem o destino comum a tantas meninas pobres da época: servir em casas de famílias ricas da região em troca de alimentação e moradia.

A mãe sabia que, nesses casos, as filham estariam mais suscetíveis ao trabalho precarizado e violências de classe, raça e gênero.

LENA SANTOS: além de artista, é fundadora de coletivo de educação sexual (foto: Kalinca Maki).

Anos mais tarde, Elita migrou para São Paulo com as filhas. Por muitos anos, trabalhou como lavadora de uniformes numa grande indústria de alimentos. Na velhice, a matriarca voltou ao Rio Grande do Norte, onde viveu tranquilamente até o seu falecimento, em 2023.

Em relação as filhas, o objetivo de Elita deu certo. Na vida adulta, Lena se tornou assistente social. Em grande parte, sua rotina consistia em orientação socioeducativa para crianças e jovens.

Já aposentada, Lena publicou dois livros de poesias. O Despertar da Negritude de uma Pérola foi lançado em 2024, num evento no Museu das Favelas. Já Pensamentos Desenjaulados foi publicado em 2025. Ambos abordam saudade, amor, empoderamento, afetividade e injustiças.

Lena também é fundadora do coletivo Sentença de Vida, que desenvolve atividades de educação sexual e conscientização sobre ISTs nas periferias da zona leste de São Paulo, e participante do Sarau Sopa das Letras [perfilado na Emerge].

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A URGÊNCIA DA SUSTENTABILIDADE URBANA

Outra característica marcante nas bonecas de Lena é o uso de materiais reaproveitados. Parte dos corpos e acessórios das bonecas são feitos com garrafas PET. Os vestidos são feitos com retalhos de tecidos. Por sua vez, o enchimento é de sobras de materiais sintéticos, como nylon de guarda-chuvas.

Na confecção das obras, Lena usa técnicas variadas: bordado, sushiko (pontos decorativos japoneses), macramê e aplicação de pedrarias.

“Eu uso o que tenho à mão”, diz ela. “A maior parte são materiais do dia a dia, retrabalhados artesanalmente”.

Atualmente, Lena mora na área rural Santa Isabel, na Região Metropolitana de São Paulo. A cidade é cortada por cinco rios e ainda possui arvores nativas da mata atlântica ameaçadas de extinção, como a Terminalia igaratensis.

Por sua vez, 60 quilômetros de distância de Santa Isabel, a capital paulista gera cerca de 12 toneladas de lixo por dia, sendo que apenas entre 3% e 4% são reciclados, segundo estimativas da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais.

FOTOGRAFIAS: Kalinca Maki.

Quem escreveu

Foto de João Ricardo Dias

João Ricardo Dias

Jornalista profissional com interesse em cultura, direitos humanos, história e política internacional. É escritor com seis obras literárias publicadas, entre elas Hóstia Negra (2021) e Os anjos calados escutam a sinfonia de Deus (2022). Já atuou como roteirista e diretor de transmissões ao vivo.

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