Do terrão à Europa: oportunidades e preconceito na Alemanha

30/06/2025

Lucas Costa saiu da periferia de São Paulo para jogar futebol na Europa. Ele conta os desafios, aprendizados e sonhos.

O Mundial de Clubes 2025 está mexendo com a emoção dos brasileiros fãs de futebol. Realizado nos Estados Unidos até 13 de julho, a copa reuniu 32 das melhores equipes do futebol mundial. Flamengo, Palmeiras, Fluminense e Botafogo são os representantes brasileiros.

Dos quase mil atletas inscritos na competição, 141 são brasileiros, o que coloca o país na primeira colocação entre os com mais representantes. Desses, 95 defendem os quatro times do Brasil, enquanto 46 estão em equipes estrangeiras.

Bem longe do país sede, Lucas da Silva Costa, 21 anos, tem assistido boa parte dos jogos. Em busca do sonho de se tornar um jogador profissional, o jovem da periferia de São Paulo trocou os campos do Brasil para jogar nos gramados da Alemanha.

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Desde o primeiro contato com a bola, com o incentivo do pai, até a chance de mostrar seu talento na Europa, ele viveu experiências que vão muito além do esporte. Precisou lidar com o peso da adaptação cultural, o impacto do racismo e o choque de uma nova rotina e idioma. Numa conversa sincera, Lucas conta como o futebol lhe abriu portas, ensinou lições e ampliou sua visão sobre a desigualdade. Leiam os destaques da entrevista abaixo.

EMERGE MAG: Como surgiu a oportunidade de jogar na Alemanha?

Lucas Costa: Surgiu enquanto eu jogava em um projeto da equipe de futebol amador Urca, em Itaquera, na Zona Leste de São Paulo. Lá, conheci um empresário que viu potencial em mim e quis me ajudar. Ele enviou um vídeo meu para um amigo, que também é empresário e tinha contato com um clube da Alemanha. Graças a Deus o clube se interessou pelo meu futebol, e assim eu fui contratado.

Quais foram as maiores dificuldades ao se mudar para outro país?

Tive um choque cultural muito grande. Muitas coisas que fazemos no Brasil são diferentes. Por exemplo, se você está próximo da faixa de pedestre, todos os carros param, mesmo sem sinal ou câmera, é uma questão cultural para eles. Mas o maior desafio foi a língua. Eu até me virava com o inglês, mas o alemão é muito difícil de falar. E nem todos estavam dispostos a falar inglês, porque, na visão deles, eu deveria aprender o idioma local.

REFORÇO BRASILEIRO: zagueiro joga no SV Neuhof (foto: Matheus Honorato)
Como conciliar as questões de adaptação com o futebol?

É bem complicado. Mas, conforme você vai jogando, acaba aprendendo. No treino, por exemplo, o treinador falava primeiro em alemão e depois em inglês. Assim, fui pegando palavras repetidas, especialmente números e instruções. Comecei a entender o idioma pelo contexto e pela entonação. Mas é muito importante fazer aulas para aprender de verdade, só ouvindo, você acaba se complicando. Alemão é um idioma bem diferente do que eu estava acostumado.

Você já sofreu algum episódio de racismo enquanto jogava no Brasil?

No Brasil, não. Graças a Deus, nunca sofri nenhum tipo de racismo. O nosso país tem uma diversidade muito rica, e eu nunca passei por isso aqui.

E nem viu alguém sofrendo?

Não, no Brasil não.

E na Alemanha?

Sim, eu sofri e meus companheiros também. Por exemplo, se um jogador alemão fazia uma falta mais pesada, não recebia punição, mas se a gente fizesse uma mais leve, a gente já levava cartão. Além disso, já fomos xingados em campo, até por pessoas do nosso próprio time, nos chamaram de “macaco” e disseram que morávamos na selva. Torcedores também já fizeram isso. Fora do campo, eu também passei por situações de racismo. Fui a uma loja de perfumes e, quando fui testar um, a atendente me disse que já estava suficiente, como se eu não tivesse o direito de testar o perfume se não fosse comprar. Quando respondi que só falava inglês, ela continuou falando comigo em alemão, como se eu fosse obrigado a entender a língua. Na Europa, senti bastante racismo, e isso me impactou.

O quanto ser brasileiro reforça o preconceito dentro de campo?

O Brasil é mundialmente conhecido pelo seu futebol, sabem da forma alegre que a gente joga, como o uso de dribles. Quando jogamos assim, muitas pessoas pensam que estamos zombando deles, que estamos “tirando uma” com a cara deles. Eles se questionam: “por que esse preto brasileiro está jogando assim?”, “por que ele não joga do jeito que eu quero?”. Existe muito preconceito relacionado ao nosso estilo de jogo.

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Sua experiência na Europa mudou sua visão sobre a desigualdade?

Mudou, mudou totalmente. Eu já sabia que a desigualdade no Brasil era grande, mas, indo para lá, percebi que a diferença é muito maior do que eu imaginava. É um outro mundo. No Brasil, vemos muitas pessoas em situação de rua, passando fome. Lá, quase não vi isso. Na cidade onde fiquei, como Neuhof, no interior, não vi ninguém morando na rua. Em Berlim até tinha, mas era muito pouco. Além disso, o acesso à educação de qualidade é muito alto. Foi uma experiência que realmente abriu meus olhos para ver o abismo entre os dois países.

O que o futebol representa na vida de jovens de origem periférica?

Com certeza. Muitos jovens da periferia não têm tanto acesso à educação e outras oportunidades, então o futebol pode ser uma forma de mudar de vida. Eu nunca imaginei que, com o meu futebol, iria conseguir chegar e brilhar na Europa. Conversei recentemente com o pessoal do meu antigo clube, e eles disseram a mesma coisa, que nunca imaginaram um “favelado” jogando na Alemanha, com tudo do bom e do melhor.

ORIGEM: atleta iniciou a carreira no futebol de várzea (foto: Maria Alejandra).
Como você pretende usar essa experiência que você teve para inspirar outros jovens?

Quero dizer para eles acreditarem nos seus sonhos e se manterem disciplinados. É importante não se perder nas distrações e na farra, continuar acreditando, mesmo quando parecer difícil. Lá na frente, o esforço vai valer a pena, e você acaba colhendo os frutos. É um caminho difícil, claro, mas com fé e trabalho, você consegue chegar lá e conquistar o que sempre sonhou.

Existe algo que você gostaria de mudar na forma como o futebol trata os jogadores periféricos?

Com certeza. O que eu mais gostaria de mudar é o preconceito, especialmente o racismo. Muitos jogadores brasileiros, principalmente os negros, saem de um país com menos condições e são vistos como coitados. E se fizerem uma jogada diferente, são julgados como se estivesse abusando ou tirando sarro dos outros, simplesmente por sermos pretos e brasileiros. Eu gostaria de mudar a forma como as pessoas nos veem, combatendo o racismo.

O que mais pode ser feito para democratizar o acesso ao futebol?

Acho que precisa de mais oportunidades para quem tem o futebol como única saída. Muitos jovens da periferia só têm o futebol, então seria importante construir mais campos e oferecer mais acessibilidade. É importante que clubes locais, principalmente os de prefeitura, invistam em infraestrutura, equipamentos e artigos esportivos, como bolas de qualidade, para ter treinos melhores. Muitas vezes, o terrão tem apenas dois gols e uma bola que, se sair do campo, acaba o jogo. Então, esse investimento no futebol da periferia é fundamental.

Quais são seus planos para o futuro dentro e fora do gramado?

Dentro dos campos, meu objetivo é chegar a um clube grande, que jogue nas principais ligas, como na Inglaterra, Alemanha ou Espanha, e que dispute competições como a Champions League. Quero construir uma carreira promissora. Fora dos gramados, quero alcançar estabilidade para construir minha vida: comprar uma casa, um carro e dar uma situação melhor para minha família e para minha namorada. Minha meta é construir uma vida na Europa, onde as condições são melhores do que no Brasil.

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Redação Emerge Mag

Revista digital de cultura, direitos humanos e economia criativa interseccional e consultoria de diversidade e impacto social (ESG).

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