Entre becos e vielas, coletivo de artistas visuais usa o grafite para expor nos muros as demandas e anseios da população do extremo leste paulistano
Contrariando o cantor Criolo, existe amor em SP sim – e quem me diz são os grafites da cidade. Como arte tipicamente urbana, o grafite reflete as demandas da metrópole e se vale de ilustrações para despertar o pensamento crítico. É importante frisar que o grafite chegou no Brasil, desembarcando em São Paulo, no final da década de 70, com artistas visuais influenciados pela cultura norte-americana. Naquela época, vivíamos um período marcado pela censura da Ditadura Militar e os grafiteiros foram extremamente corajosos e transgressores.
Décadas mais tarde, a mesma coragem fez nascer o Grupo OPNI, coletivo que usa o grafite e artes visuais para retratar e representar a realidade da periferia. Fundado em 1997, o coletivo mantém sua base na Vila Flávia, em São Mateus, no extremo leste de São Paulo. Veja abaixo artes do coletivo pelo bairro:
Nesses 23 anos de existência, a cidade mudou e, por consequência, a arte do grafite também. Se no começo ilustrar muros, mesmo com autorização, era visto como uma atividade marginal e artistas pretos e periféricos tinham pouco acesso a materiais e insumos de trabalho – e muito menos ao dinheiro que circula no mercado de arte –, hoje o grafite está assimilado a paisagem urbana, com artistas sendo reconhecidos e contratados por seus traços.
Moradora de Itaquera desde criança, conheci o OPNI em 2017 numa oficina de fotografia de um curso que fazia na época. Naquele encontro, passei uma tarde fotografando os inúmeros trabalhos do coletivo pelo bairro e, confesso, a experiência mudou a minha perspectiva sobre o território que faço parte.
O OPNI se insere no conceito de “artivismo”, em que estratégias e ações artísticas, simbólicas e estéticas se fundem a temas políticos para amplificar, sensibilizar e problematizar causas e reivindicações sociais (viu só, um grafite nunca é apenas um desenho na parede).
Devido a longa e sólida trajetória, o coletivo possui um vasto portifólio. Na lista, há trabalhos para artistas da música, como o Racionais MC’s, Criolo, MV Bill, Dexter e Emicida; desenvolvimento de cenografia para programas de televisão, como Malhação, da emissora Globo, e o extinto Manos e Minas, da TV Cultura; e ações comerciais para marcas, entre elas Nike, Passport, Revista Rolling Stone e Revista Raça.
Em 2013, num desses projetos publicitários, o artista Toddy, representando o coletivo, foi convidado pela Nike para customizar pares de tênis para o jogador de basquete Kobe Bryant, que estava de passagem pelo Brasil. Kobe é um dos maiores ícones mundiais do esporte e faleceu no início de 2020 após a queda do helicóptero em que voava junto a sua filha Ginna. Entre outros trabalhos do coletivo, estão o projeto Quadro Negro, de disseminação de histórias em grandes painéis visuais (em média, 40m²) de personalidades negras, como Grande Otelo, Luiz Gonzaga, Nelson Mandela; e o Favela Jazz, intervenção realizada na 45° edição do New Orleans Jazz & Heritage Festival, maior festival de jazz do mundo que acontece anualmente nos Estados Unidos.
Mais recentemente, o coletivo participou de uma homenagem ao rapper Sabotage ao realizar uma pintura na casa onde o artista morou, na “Favela do Canão, ali na Zona Sul, sim, Brooklyn“. Em 2019, o coletivo também fez uma pintura de arquiteto Joaquim Pinto de Oliveira (1721-1811), mais conhecido como Tebas, que, após sua alforria, foi um dos principais profissionais para a mudança arquitetônica do centro de São Paulo.
“Pintar uma empena no centro da capital trazendo a história de um homem negro que foi escravizado foi a realização de um sonho”, diz Letícia Souza, produtora do OPNI. “Ali conseguimos ver a importância do nosso trabalho, a confiança que as pessoas depositam no nosso coletivo e o amor que nós temos pelo o que fazemos.”
UMA GALERIA DE ARTE A CÉU ABERTO
Em 2008, o OPNI fundou a ONG São Mateus em Movimento para proporcionar atividades culturais para os jovens da região, como saraus, rodas de samba e oficinas. No ano seguinte, o coletivo criou o projeto Favela Galeria, que consiste em grafitar diversos muros do bairro para transformá-lo em uma grande galeria de arte urbana a céu aberto. A ação lembra o The Bushwick Collective, galeria de arte urbana instalada pelas ruas do Brooklyn, em Nova York, que se tornou um relevante ponto turístico. Em 2014, a Favela Galeria foi vencedor do Prêmio Governador do Estado de São Paulo para a Cultura, na categoria territórios. Letícia fala:
“A Favela Galeria tornou as casas do bairro mais vivas e coloridas. Os moradores participam ativamente das ações e a economia da quebrada é impactada diretamente por meio de passeios agendados por escolas e turistas, incluindo estrangeiros, que geram fluxo e consomem no comércio local”
A ARTE DA SOLIDARIEDADE
Quando a pandemia da Covid-19 explodiu, parte dos integrantes do Grupo OPNI estavam a trabalho nos Estados Unidos e tiveram que retornar ao Brasil dois meses antes do previsto. Desde então, o coletivo tem tentado se adaptar a nova situação com alternativas físicas e digitais. Um dos focos é a venda de artes pela internet e a produção de conteúdo sobre os processos criativos dos artistas do coletivo, uma forma manter a visibilidade e o contato com o público.
O coletivo também realizou ações solidárias. A Favela Galeria foi ponto de arrecadação de alimentos e itens de higiene e limpeza, que foram usados para montar mais de mais de 400 cestas básicas distribuídas nas comunidades ao redor.
“Temos nos fortalecido e buscado a união em meio a pandemia. O OPNI é referência para muitas crianças e jovens esquecidas pelo Estado, que precisam se sentir representados para continuarem acreditando que é possível viver um futuro melhor”
Após o período de pandemia, aconselho os leitores da Emerge Mag a conhecer o bairro e fazer a tour pela Favela Galeria para ver de perto o trabalho do coletivo. Como diz a música Caxangá, do Berço do Samba de São Mateus “vem conhecer São Mateus, terra igual não há”, pois, enquanto muitos cantos da cidade se tornam cada vez mais cinza, nas quebradas as cores dão vida.
FOTOGRAFIAS: Rafael Felix
Esta reportagem integra o projeto Mapeamento de Coletivos e Produtores Culturais da Região Metropolitana de São Paulo e conta com apoio do Edital ProAC nº 14/2019, de incentivo ao desenvolvimento da cultura popular, tradicional, urbana, negra, indígena e plural no Estado de São Paulo. Veja outras reportagens da série:
– O Groovin Mood dissemina a cultura sound system Brasil adentro
– Não há fronteiras para o teatro da Arquivo 2
– Os encontros preciosos do Abayomi Ateliê
– O podcast Almerindas é um aquilombamento na literatura