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Não há fronteiras para o teatro da Arquivo 2

27/08/2020

A produtora audiovisual e companhia cênica já fez montagens em comunidades indígenas e unidades da Fundação Casa e tem produzido obras questionadoras em plena pandemia

Companhia cênica e de audiovisual fez montagens em comunidades indígenas e unidades da Fundação Casa e tem produzido obras questionadoras em plena pandemia

*O texto contém linguagem neutra de gêneros gramaticais.

O relacionamento de Yago Goya e Yago Micall começou com um match num desses aplicativos de pegação. Além da conexão amorosa que já dura seis anos, a tecnologia aproximou as almas de artistas. Em 2015, Goya e Micall fundaram o coletivo Arquivo 2, uma produtora audiovisual e de espetáculos de dança e teatro.

Misturar amor com trabalho e ter sucesso não é tarefa fácil. Nessa jornada, Goya e Micall passaram por um processo para reconhecer e aceitar o que contribuía a união entre amantes e profissionais, sem deixar de lado as próprias individualidades.

“A compatibilidade não é só sobre quantas coisas a gente tem em comum”, diz Micall. “É também sobre como a gente reconhece e lida com as divergências.”

MICALL E GOYA, DA ARQUIVO DOIS: PEÇAS CÊNICAS E REPRESENTAÇÕES IMAGÉTICAS

O nome Arquivo 2 é uma alusão as referências que essas bichas paulistanas, filhes de migrantes nordestinos, carregam consigo e transportam para os seus trabalhos e experimentos. A produção do coletivo versa sobre a existencialidade, permeada por recortes de raça, gênero e de classe.

A primeira experimentação da Arquivo 2 no teatro foi Bem-Vindo ao Paraíso, em 2015. Apresentada no teatro Ruth Escobar, a peça com direção de Yago Micall foi inspirada no livro digital de poesias Necrophilia da Alma, de autoria de Goya, que abordava o encontro de Caos e Eros, representados por Niki Nishi e Letícia Leal. Por sua vez, no audiovisual, a Arquivo 2 foca em representações imagéticas de textos autorais e as promovem no Youtube no Canal Arquivo 2.

O coletivo é flexível e cada parceire participa de uma proposta, atualmente colaboram com o coletivo a atriz e produtora Victoria Di Paula, o multiartista Jerona Ruyce, o percussionista Fábio Olí, o pesquisador musical Jonatha Cruz, entre outros artistas. Também engrossa o time com coletivos parceires, como Colar Faz Bem, Núclea Tranzborde, Animalia e Nossa Casa. Goya comenta o lance da cocriação:

“Dialogamos com novos artistas e quem chega traz suas convicções e promove uma positiva fricção de ideias. Tudo o que é proposto pode ser repensado e recolocado”

Num desses encontros, arraigado principalmente na ancestralidade e na visão afrofuturística de Yago Micall, Jerona Ruyce e Fabio Olí, nasceu o maior trabalho da Arquivo 2: o espetáculo teatral O Canto de Odé, lançado em 2019. Montada numa laje de uma casa no município de Diadema, a peça conta a história de Odé (interpretado por Micall), um jovem que tem sua infância interrompida pela pobreza e que, acompanhado pelas vozes que vivem em sua cabeça, herdadas de suas raízes afro-brasileiras, passa a lutar para não ser mais um jovem negro aniquilado.

Em iorubá – idioma da família linguística nígero-congolesa –, Odé significa “caçador ou caçadora” e remete ao orixá Oxóssi, divindade das matas e florestas, da fartura e da abundância. O Canto de Odé foi encenado nas comunidades indígenas de Paranapuã, em São Vicente; Aguapeú, em Mongaguá; e Tekoa Pyau, no pico do Jaraguá. Uma das preocupações do coletivo ao apresentar o espetáculo nas comunidades foi manter o respeito e exaltar a resistência desses povos, que, como a personagem da peça, enfrentam os brancos que querem acabar com seu mundo. Esse cuidado não é comum nas relações entre indígenas e brancos. Recentemente, uma “ação social” feita por esposas de militares na terra indígena Yanomami incluiu maquiagem, pintura de unhas e distribuição de roupas para mulheres da região (é espírito colonizador que chama, né?).

No canal do Youtube da Arquivo 2, está disponível o processo de criação e amadurecimento de O Canto de Odé e a integra de uma apresentação no CEU das Artes, em Osasco.

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QUEM VÊ APLAUSOS, NÃO VÊ CORRE

Sem cenários complexos e caros sistemas de iluminação, mas com talento, boa dramaturgia e uma kombi que os artistas usam para levar as montagens para vários cantos da cidade, a Arquivo 2 usa o teatro para emocionar, educar e entreter o público fora da caixa preta. Contudo, a missão tem seus desafios, muitas vezes mais burocráticos do que artísticos.

BICHAS PAULISTANAS E FILHES DE NORDESTINOS: OBRAS DO COLETIVO VERSAM SOBRE EXISTENCIALIDADE

Goya e Micall contam que foi somente graças ao financiamento do Programa para Valorização de Iniciativas Culturais (VAI), da Prefeitura de São Paulo, e com um documento oficial da Secretária de Cultura de São Paulo, que conseguiram permissão para apresentar O Canto de Odé à jovens de unidades da Fundação Casa de Diadema e da Mooca, na capital paulista.

“Só queremos levar a arte para lugares que geralmente ela não acessa e trocar ideias a partir das experiências que ela gera”, afirma Goya.

O objetivo da Arquivo 2 de aumentar a distribuição da arte foi totalmente impacto pela pandemia da Covid-19. Desde março, o coletivo parou a circulação de espetáculos. Em casa e afastades das demais pessoas do coletivo, Goya e Micall têm aproveitado os últimos meses para estruturar novas linguagens e projetos e focar em reuniões via videoconferência. Ao mesmo tempo, a companhia não tem recorrido ao uso desenfreado de lives nas redes sociais. Micall explica o porquê:

“Não queremos ser reféns de lives em redes sociais, principalmente porque a febre dessa tecnologia é um campo onde tudo se diz, mas quase nada se compartilha de forma horizontal. A informação está nas redes sociais, mas dificilmente vemos conteúdos que, de fato, valorizem e gerem reflexões sobre esse momento”

De fato, o excesso de lives e o foco em gerar vendas de produtos e serviços digitais, desde cursos profissionalizantes a aulas de yoga, têm incomodado o público. A pesquisa “Deus me Lives: intoxicação na quarentena“, realizada pela coluna Futuro do Trabalho do Podcast Caos Corporativo, mostrou que 12% dos respondentes reclamaram da “falta de preparo dos speakers”; 17,3% criticaram a “falta de interatividade e da condição técnica inadequada” e 40,4% se sentiram incomodados com o “conteúdo puramente comercial” das lives.

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A ARTE NÃO PARA

Das reflexões de uma quarentena interminável, a Arquivo 2 criou um curta-metragem em pleno isolamento. A obra “Imersa” conta a história de Helena Salete (interpretada por Yago Goya) que, isolada socialmente por conta de uma pandemia, se propõe a comemorar a vida e celebrar seu aniversário. Para Goya, o trabalho é a materialização de um retorno do coletivo as suas origens. “Voltamos nosso olhar para dentro de nós, para a nossa casa, a rotina e sensação e sentimentos provocados por esses momentos”, diz elu.

CONEXÃO: DUPLA MANTÉM RELACIONAMENTO PROFISSIONAL-AMOROSO HÁ SEIS ANOS

O trabalho foi aprovado na chamada Curta em Casa da SPcine e do Instituto Criar de TV, Cinema e Novas Mídias. O programa selecionou 200 produtores para contarem em audiovisual suas perspectivas sobre a pandemia e a quarentena. É possível assistir ao curta gratuitamente no canal do Youtube do instituto.

Recentemente, a Arquivo 2 se uniu a “Cia Sacana” para um novo espetáculo selecionado na primeira edição do fomento de Apoio à Cultura Negra, da Prefeitura de São Paulo.

Além de procurar maneiras de garantir a sobrevivência financeira do coletivo, Micall revela sua preocupação em fortalecer a relação do grupo e garantir o bem-estar de todes.

“O trabalho precisa trazer retorno financeiro, mas também precisa contribuir filosoficamente. Procuramos garantir que nós e as demais pessoas do coletivo fiquem bem psicologicamente e espiritualmente. Não está fácil, mas temos conseguido”

Fazer e viver de arte no Brasil é uma viagem cheia de peripécias. A história da Arquivo 2 é um caso exemplar. Frente a poucos recursos, a tática é se valer de boas e reais conexões e usar a criatividade para gerar conteúdo relevante. A meta é aprimorar o pensamento crítico e o fazer artístico. E, assim como Oxóssi, usar flechas certeiras para alcançar a glória.

FOTOGRAFIAS: Rafael Felix
VIDEOARTE:
Kalinca Maki e Nu Abe

Esta reportagem integra o projeto Mapeamento de Coletivos e Produtores Culturais da Região Metropolitana de São Paulo e conta com apoio do Edital ProAC nº 14/2019, de incentivo ao desenvolvimento da cultura popular, tradicional, urbana, negra, indígena e plural no Estado de São Paulo. Veja outras reportagens da série:
O Groovin Mood dissemina a cultura sound system Brasil adentro

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