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O podcast Almerindas é um aquilombamento na literatura

16/09/2020

Programa no Spotify traz audiodramas sobre poesias, cordéis, crônicas e biografias para amplificar obras literárias de escritoras negras

Programa disponível no Spotify traz audiodramas sobre poesias, cordéis, crônicas e biografias para amplificar obras literárias de escritoras negras

“Eu sempre, por instinto, me revoltei contra a desigualdade de direitos entre homem e mulher”, bradava Almerinda Farias Gama, uma das primeiras mulheres negras a atuar no cenário político brasileiro, ainda na década de 1930. Nascida em Alagoas, advogada e sindicalista, ela foi uma das duas únicas mulheres a participar da Assembleia Constituinte de 1933, feito que abriu portas para a presença feminina negra na política brasileira.

Quase 100 anos depois, Almerinda inspirou Lena Roque e Alexandra Ucanda a criar o podcast Almerindas, que apresenta audiodramas de obras literárias de mulheres negras. Nos programas, a dupla narra e comenta poesias, cordéis, crônicas, ensaios e biografias, com foco em amplificar a voz – literalmente – de mulheres pretas da literatura, sejam elas ancestrais, acadêmicas ou contemporâneas, voltado às mulheres pretas da periferia, principalmente.

Lena, moradora na Zona Norte de São Paulo, Alexandra, moradora da Zona Sul se conheceram há cerca de dois num projeto de um documentário que acabou não dando certo, mas trouxe uma grande amizade entre as duas. Alexandra é uma articuladora nata. Há anos, ela e outros amigues pensaram em fazer podcasts para pessoas pretas. Nascia então a Família Quiprocó, coletivo que abordava cultura pop, universo geek, HQ’s e os rolês da periferia. Posteriormente, com um spin-off, o Almerindas podcast foi criado no primeiro semestre de 2019, ano em que o Brasil se consolidou como o segundo maior mercado de podcasts do mundo. O podcast está disponível no Spotify.

Tanto Lena quanto Alexandra são atrizes de formação e com suas vozes doces e fortes fica impossível não prestar atenção em cada palavra do podcast. “Eu adoro ler, é o meu passatempo predileto e uma forma de prazer”, diz Lena, que tem lido um livro por mês durante a pandemia. “A literatura faz parte da minha vida”.

(IN)VISIBILIDADE DAS MULHERES NEGRAS

A sociedade brasileira é estruturada em uma pirâmide encabeçada por homens brancos, seguidos por mulheres brancas, homens negros e, em sua base, as mulheres negras. Esse fator evidencia nosso grande apagamento em diversos âmbitos, inclusive na arte e na literatura.

Para compreender o cenário, vamos dar alguns passos para trás: no geral, a leitura é pouco incentivada na época escolar. Provavelmente, poucos de nós se lembra de algum livro que um professor tenha trabalhado de forma integral, principalmente se estudou em escola pública. O fato vai contra a importante inclusão da literatura já na infância.

Na adolescência, nosso mundo começa a se abrir. Começamos a entender um pouco mais de história e geografia, o que nos faz perceber quem somos no mundo. Por causa do processo de colonização, não somos nem africanos e tampouco americanos. Nesse contexto, continuamente, é importante ler de tudo e não nos centralizar somente em literaturas eurocêntricas e americanas, pois estas não correspondem à nossa realidade. “A literatura é base, mas é importante ler tudo que for possível”, diz Lena.

Também é importante incluir nos hábitos de leitura a literatura preta, principalmente se você for uma pessoa negra. Afinal, é nela que você pode encontrar um pedaço de si no mundo e outras narrativas possíveis que fogem do padrão comumente proferido na literatura branca, onde aparecemos pouco e somos retratados de maneira estereotipada.

O lado positivo disso tudo é que as mulheres pretas estão correndo para criar a própria visibilidade, pois são elas que se dedicam, produzem e vendem suas obras. Lena explica:

“O Almerindas não é tanto sobre dar visibilidade e, sim, sobre apresentar obras literárias de mulheres negras, que já existiam antes de nós. A diferença é que fazemos isso em outra plataforma com outro formato: o podcast, onde muitas autoras não estão presentes”

Ao tratar de fomentar autoras negras com um viés artístico e étnico, é recomendado desromantizar o motivo de fazê-lo. Embora o amor alimente o aprendizado, a articulação e a natureza das atrizes e apresentadoras do Almerindas – o que é muito importante, o podcast não se resume a isso. O motivador em comum é a luta, pois, para a maioria das pessoas pretas, não existe a possibilidade de virar as costas para a desigualdade racial provinda do período escravocrata. “Para muitas de nós, não tem disso de “ah, não tô afim de discutir política, prefiro viajar pra Maresias”, diz Lena. “Se a gente não fizer por nós mesmas, quem fará?”

MULHERES NEGRAS FORAM, HISTORICAMENTE, SILENCIADAS, INCLUSIVE NA LITERATURA (ilustração: Janaína Vieira)

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O IMPACTO DAS PALAVRAS PRETAS

Em 2015, durante o Prêmio Laureate Brasil, a jornalista e empresária social baiana Monique Evelle, já entrevistada pela Emerge, afirmou que “nunca tinha sido tímida, mas sim silenciada”. A frase, que ecoou dentro de mim por meses, diz muito sobre o silenciamento que mulheres negras sofreram e sofrem durante suas vidas inteiras. A falta de oportunidades, de acesso à informação, de consciência sobre si e pouca possibilidade de falar fazem com que nós nos calemos. No entanto, encontrar um espaço seguro e compreensivo rodeado de pessoas como nós, pode fazer com que a gente se abra para sermos o que quisermos.

Durante a entrevista, Lena compartilhou que, em uma roda de leitura conduzida pelo Almerindas, uma mulher pegou o microfone e falou por cerca de 40 minutos ininterruptamente. A cena fez a apresentadora refletir: “é muito silenciamento a vida toda, daí quando teve a oportunidade de falar, ela falou sem parar.”

Sabemos que o contato e a reunião com pessoas que entendem e passam pelas mesmas dores não começaram agora, mas sim nos quilombos, que simboliza o primeiro ato de resistência dos negros na sociedade brasileira. É por isso que hoje o termo “aquilombamento” é usado para se referir a união de pessoas preta que colaboram entrei si para escrever suas próprias histórias. Dessa forma, é possível dizer que o podcast Almerindas também é uma forma de aquilombamento, já que traz a oportunidade coletividade e trocas de saberes entre pessoas negras, sejam elas autoras ou leitoras.

Agora, após um ano de vida, os planos do Almerindas é a expansão: alcançar cada vez mais pessoas para que os escritos de mulheres negras não sejam exceção no repertório de literatura, mas sim uma regra. Outro objetivo é gerar receita para remunerar a equipe do podcast, formado por cinco pessoas de diferentes bairros da cidade de São Paulo – atualmente, o podcast não gera lucro e os integrantes trabalham de forma voluntária.

Como nas primeiras páginas de um livro, Alexandra e Lena dedicam seus trabalhos a suas mães, mulheres negras, aposentadas como domésticas, que fizeram de tudo para elas se formarem na faculdade. As matriarcas são as inspirações primárias e contínuas para a realização do podcast. Lena finaliza:

“A resistência delas se dá em querer ser felizes, em abraçar os netos e ao possibilitar que as filhas sejam pessoas cada vez melhores”.

Equipe Almerindas Podcast
Alexandra Ucanda, apresentadora e produtora; Antonieta Alves, produtora; Lena Roque, apresentadora; Flávio Pereira, produtor de áudio e som e editor; Felpz, editor de áudio e som.

Equipe Família Quiprocó
Breno Shinn, produtor técnico; Marcos Vellasco, apresentador e produtor de áudio e som; Régis Passos, apresentador; Vinícius Plank, editor. Outros colaboradores de áudio e som: Marcos Wilder e Well Silva.

ILUSTRAÇÕES: Janaína Vieira exclusiva para Emerge Mag (não copiei ou compartilhe as imagens sem prévia autorização).

Esta reportagem integra o projeto Mapeamento de Coletivos e Produtores Culturais da Região Metropolitana de São Paulo e conta com apoio do Edital ProAC nº 14/2019, de incentivo ao desenvolvimento da cultura popular, tradicional, urbana, negra, indígena e plural no Estado de São Paulo. Veja outras reportagens da série:
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