Com reportagem de Guilherme Schanner e Teresa Cristina
Artista visual R. Trompaz é natural do Capão Redondo, no extremo sul de São Paulo. Suas obras, em grande parte nas técnicas de pintura sobre tela, serigrafia e xilogravura, abordam o racismo ambiental, a especulação imobiliária e as condições de moradia precárias. Uma delas é a série Segregação Social Geograficamente Escancarada. Feita com caneta com ponta de feltro sobre papel, SSGE foi inspirada em letras de rap brasileiras e evidencia a desigualdade socio-residencial brasileira, como a emblemática fotografia de Tuca Vieira, que mostra um prédio de alto padrão do Morumbi ao lado da favela de Paraisópolis.
A série e outras obras de R. Trompaz podem ser vistas de pertinho na Lateral Galeria. Fundada em 2020, a galeria de arte funciona em um sobrado antigo no bairro do Ipiranga, na zona sul paulistana, com a porta para a rua e sem muros ou grades —como a arte deve ser.
A iniciativa se destaca por ter sido fundada — e ser dirigida — por pessoas pretas e por expor obras de artistas jovens e emergentes, majoritariamente. Entre seus objetivos está desmistificar a ideia das galerias de arte como lugares reservados ao conhecimento erudito e ao alto poder aquisitivo. O lance é ser um espaço acolhedor e não intimidador, frio e distante da realidade da maioria dos brasileiros como as galerias de arte costumam parecer.
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De acordo com Camila Alcântara e Guilherme Marinho, fundadores da Lateral, mais do que o deslocamento físico, o deslocamento social ainda impede muitas pessoas de acessarem galerias de arte.
Atualmente, a galeria comporta, em média, 95 obras, com preço médio que varia de R$ 300 a R$ 500. Por lá, já passaram mais de dez artistas, das artes plásticas e visuais a performances e instalações.
São fatores determinantes na escolha dos artistas o nível de desenvolvimento e investigação, a intenção ao produzir, os conceitos por trás das obras e a qualidade. Apesar da maioria dos artistas expostos serem racializados, a galeria não tem a raça como critério para a curadoria. Porém, Camila explica que o fato de serem pessoas pretas, em um mercado majoritariamente branco e elitista, influencia na escolha.
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Recentemente, a Lateral lançou uma unidade de serviços, com foco na realização de oficinas, workshops, cursos e bate-papos. O objetivo é promover e trocar conhecimento prático e teórico sobre arte e o mercado. Já aconteceram oficinas de pintura, cerâmica, colagem analógica, elaboração de projetos culturais, gestão de recursos, entre outros.
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Falando em recursos, o empoderamento financeiro dos artistas é central na Lateral Galeria, que introduz artistas no circuito para que sejam remunerados por seus trabalhos e os conecta com colecionadores. “Daí a importância de galerias de arte emergentes e democráticas”, afirma R. Trompaz.
NARRATIVAS POR CORPOS NÃO HEGEMÔNICOS
Priorizar e reconhecer artistas racializados, em contraste com a curadoria historicamente eurocentrada e branca de galerias, festivais de arte e museus é um movimento que tem sido fortalecido graças à luta dos próprios artistas e trabalhadores da cultura. Na 35ª Bienal de Arte de São Paulo de 2023, por exemplo, a lista de artistas divulgada é 92% não-branca, selecionadas por uma curadoria majoritariamente preta.
“A gente conta nos dedos as galerias de arte que têm a preocupação, o engajamento e o posicionamento de equidade racial”. A fala é de Alex Tso, curador, galerista e fundador da Diáspora Galeria, que fica na Avenida Rebouças, em Pinheiros.
Apesar de estar mergulhada no centro expandindo e no eixo mais tradicional do mercado de arte paulistano, a Diáspora é transgressora. Foi fundada em 2019 com uma equipe de curadoria 100% racializada — o próprio fundador é de descendência asiática.
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A curadoria de artistas da Diáspora já teve participação do professor, curador e artista visual Claudinei Roberto, que foi coordenador do Museu Afro Brasil; da curadora e professora Keyna Eleison, que teve passagem pelo MAM Rio; e da pesquisadora e curadora Sandra Benites, que foi a primeira mulher indígena a integrar a curadoria de uma grande instituição artística, no MASP.
A Diáspora valoriza a inspiração no cotidiano e o resgate de culturas que foram apagadas ou oprimidas nos processos colonizatórios. O próprio nome da galeria faz referência ao processo de deslocamento, em maior parte violento, de povos africanos e asiáticos para as colônias européias. E um dos desafios de ser um corpo em diáspora é lidar com o apagamento da sua ancestralidade, ao mesmo tempo que busca construir sua própria identidade.
Em exposição na galeria, a obra “Aceita?”, de Moisés Patrício, que faz parte de uma série de mesmo nome, é uma assemblage — obra feita com técnica de colagem com objetos tridimensionais — com fotografia e xucas de cabelo. A obra mostra uma mão negra com pulseira de búzios — elemento utilizado em religiões de matriz africana —, estendida em um gesto de oferecimento, segurando uma espécie de manjedoura improvisada com um bebê negro, em uma possível referência ao nascimento do menino Jesus Cristo. Apesar de fazer parte de um conjuto maior de cerca de 1000 fotografias no mesmo estilo, o questionamento no título ganha um novo sentido na obra por lembrar o convite do cristianismo para aceitar o “filho de Deus”, o subvertendo: aceitariam um Jesus negro?
“Aceita?” tem o tom racial, mas a curadoria vai além. Segundo Alex Tso, a Diáspora quer explorar temas que se comuniquem com o público, sem reforçar estereótipos. Há priorização da autonomia do artista para explorar sua subjetividade enquanto corpos socializados, alinhado ao desenvolvimento de capacidades de pesquisa, poética, conceitos e de fruições.
Moradora de Santo André, na região metropolitana de São Paulo, Cristina Suzuki é uma artistas da Galeria Diáspora. Sua pesquisa se materializa em multiplataformas, entre elas gravuras, fotografias e vídeos. Seu interesse é por padrões culturais, como decoração, linguagem e vestimentas.
Para ela, ter o trabalho exposto é mais uma etapa do processo do fazer artístico, em que a obra vai adquirir novos significados.
Daí a importância de encher os salões. É o calor das pessoas que traz a vida para a galeria.
FOTO DE CAPA: Kalinca Maki
Texto escrito em co-autoria por Guilherme Schanner e Teresa Cristina. Editado por Italo Rufino.
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