Livro autobiográfico da escritora francesa narra o impacto da educação universitária em sua identidade e em seu relacionamento com o pai
Quando os filhos dos pobres e das negras chegaram à universidade, o Brasil começou a mudar. O ingresso dessa geração no ensino superior não abalou apenas os vieses da produção de conhecimento e a cor dos intelectuais do país, criou também uma desconexão geracional e de classe em muitas famílias.
A empresária Monique Evelle, cria da periferia de Salvador, relata em texto-desabafo publicado em seu Linkedin, em 2022, com o título “Ascensão social não embranquece ninguém“, o choque de realidade que ela própria viveu com amigos e familiares ao ascender socialmente.
Após a graduação em Humanidades, com ênfase em Política e Gestão Cultural, na Universidade Federal da Bahia, Monique participou do Profissão Repórter, passou a viajar, circular em bairros ricos e escolheu empreender por autonomia. No post, ela afirma que poderia escrever um livro sobre a ascensão social e pessoas pretas.
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Enquanto o de Monique não vem, falemos de um livro já publicado. Originalmente lançado em 1983, O Lugar, da francesa Annie Ernaux, chegou ao Brasil em 2021, pela Editora Fósforo. A autora escreve sobre a França de seu tempo, décadas de 1960 e 70, mas há similaridades com o atual Brasil. Ao longo das 72 páginas, lembro de histórias de famílias brasileiras, e de suas e nossas vergonha, culpa e remorso.
Em O Lugar, Annie rememora a trajetória do pai, um camponês que se tornou operário e, depois, proprietário de um bar e mercearia numa cidade normanda, no norte da França. O negócio lhe permitiu fincar raízes e deu condições para que a filha entrasse na universidade. Prova de que na França do século passado ou no Brasil do século 21, ingressar na universidade é a realização de um sonho muitas vezes ancestral para os pobres.
“Talvez seu maior orgulho, ou até mesmo aquilo que justificava a sua existência: que eu fizesse parte de um mundo que o desprezou”
Graças ao estudo, Annie Ernaux, pôde viver em cidades maiores e menos provincianas que as de sua infância. Se casou com um homem escolarizado e burguês. E adquiriu um concorrido emprego de professora em Lyon. Sua ascensão, contudo, estabelece entre ela e o pai um embate sem fim.
Ao se intelectualizar e se emancipar, conforme desejo do pai, Annie deixa de compartilhar os mesmos valores e percepções com o homem que a criou. Nas visitas à família, brigas à mesa sobre hábitos e os mais diferentes assuntos tornaram-se comuns até que a relação com o próprio pai – e a mãe também – passa a ser limitada ao elementar, ao informativo sobre o que acontece na vida aqui e ali.
“Eu pensava que ele não podia fazer mais nada por mim. As suas palavras e as suas ideias não podiam ser usadas nas aulas de Francês ou de Filosofia, nas residências com sofás de veludo vermelho das amigas da escola”
Tal percepção não lhe é nada confortável. Annie narra momentos de profundo incômodo ao se ver dentro de um enquadramento burguês não condizente com suas origens.
“Me submeti às vontades do mundo em que vivo, que se esforça para que todos se esqueçam das lembranças de uma vida com hábitos mais simples, como se fossem uma coisa de mau gosto”
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TRÂNSFUGA DE CLASSE
Na epígrafe da obra, Annie cita o escritor Jean Genet que dizia que “escrever é o último recurso quando se traiu”, mostrando que seu livro é a tentativa de se redimir de sua traição de classe e de construir uma ponte entre dois universos, sem que um tenha que excluir o outro.
A escrita e a linguagem são também as formas que ela encontrou para desarticular as estruturas de manutenção das hierarquias e se aproximar do pai. Formada em Letras, Annie Ernaux opta por uma escrita simples, objetiva, sem floreios. Isso seria transgressor o suficiente, já que ela vem de uma cultura em que se reivindica o supra sumo da sofisticação. No entanto, o real motivo da escolha é o seu pai, que utilizava um dialeto da Normandia, o patuá, mas que, ao mudar para Paris, se forçou a utilizar o francês padrão, com o intuito de não ser ridicularizado.
“Qualquer tentativa de desenvolver um estilo soaria como uma forma de mantê-los [os pais] à distância”
A narrativa de Annie Ernaux em 1983 reverbera no Brasil de 2023 pela similaridade de conflitos que, cada um de nós à sua maneira, tem que enfrentar quando passa a ser o que o sociólogo francês Pierre Bourdieu classificou como “trânsfuga de classe”. Isto é, alguém que rompe com as barreiras de sua classe social de origem, e que precisa aprender amar suas origens, mas não se prender nem se culpar por voar além delas.
SERVIÇO
O lugar
Annie Ernaux*
Fósforo Editora
1ª edição (10 maio 2021)
72 páginas
*Annie Ernaux é a primeira mulher francesa premiada com o Nobel de Literatura (2022).
FOTO DE ABERTURA: Estudantes chegam ao Centro Universitário do Distrito Federal, para o segundo dia de prova do Enem 2020. Marcello Casal Jr/Agência Brasil