Apesar de estar enraizada na cultura Ocidental, a monogamia não é a única forma de se relacionar no mundo e nem é inerente à espécie humana.
Em 2013, uma pesquisa dos zoólogos Dieter Lukas e Tim Clutton-Brock, da Universidade de Cambridge do Reino Unido, analisou 2.545 espécies de mamíferos (incluindo nós, homosapiens) e descobriu que as monogâmicas estavam presentes em menos de 9% das espécies. Saindo da biologia e indo para as ciências sociais, uma análise do livro “O Mito da Monogamia – Fidelidade e Infidelidade nos animais e seres humanos”, feita por Paula Mota Santos, professora da Universidade de João Pessoa e doutoranda em Antropologia pela University College London, diferente do que acontece entre os animais, para os humanos a prática sexual tem componentes recreativos e de consolidação de laços sociais e vai além da reprodução da espécie.
Agora você deve estar pensando “ué, e de onde vem esse negócio de que só pode ter um companheire?”
Uma das origens remonta ao século 13, quando a Igreja Católica transformou o “matrimônio monogâmico e inquebrantável” em sacramento, ou seja, um ato instituído por Deus para purificar e santificar as almas. Naquela época, o casamento era celebrado na porta da igreja. Foi somente a partir do século 17 que ele passou a acontecer ao pé do altar, dentro da casa do deus cristão. De acordo com us psicólogues Tatiane Costa e Marcus Cézar Belmino no artigo “Poliamor: da institucionalização da monogamia à revolução sexual de Paul Goodman”, a imposição religiosa da monogamia também era uma forma da elite econômica europeia resguardar propriedades e sucessão de heranças.
Para Geni Núñez, indígena guarani, mestre em psicologia social e ativiste anticolonial, os casamentos indígenas não têm a obrigatoriedade do “para sempre” ou a imposição de se relacionar com apenas uma pessoa. Por isso, inclusive, eram fortemente combatidos por jesuítas durante a catequização – o nome católico para colonização e etnocídio. Os reflexos desses discursos são reproduzidos ainda hoje, quando apenas a monogamia é atrelada ao afeto enquanto a não monogamia é coisa de “gente suja e incivilizada”. Ela complementa:
GENI NÚÑES: CASAMENTO DOS INDÍGENAS GUARANI NÃO TEM OBRIGATORIEDADE DO “PARA SEMPRE” (Foto: Rosa Neon)
“O discurso colonial não é apenas a defesa de uma fé, de um modo de ser. É a imposição violenta de sua maneira para o mundo. Reconhecer que defender monogamia é defender um discurso crente e colonial é o primeiro passo para a transformação”
GEGI NÚÑEZ, PSICÓLOGA
Para Geni, a monogamia é uma estrutura que organiza a sociedade e dita a norma, ou seja, a forma “certa” ou “normal” de nos relacionarmos. A monogamia também é um grande alicerce do patriarcado, já que ela praticamente não existe para os homens cisgêneros heterossexuais, que, desde que o mundo é mundo, traem as suas companheiras e raramente são punidos por isso, porém quando a “infiel” é a mulher, ela é reduzida a uma “vagabunda”.
A ativista diz que se a sociedade não fosse monogâmica é provável que teríamos leis completamente diferentes, porque a maioria das leis são focadas na proteção e preservação da família nuclear.
“Se a monogamia se refere a algo muito maior do que a exclusividade, do que as relações românticas, a não monogamia seria uma contestação, ou uma rejeição a toda essa estrutura monogâmica patriarcal”
SOBONFU SOMÉ: NA CULTURA DAGARA, RELACIONAMENTOS ENVOLVEM TODA A COMUNIDADE (Foto: Nut Tmu-Ankh)
Um livro incrível que aborda a construção do amor e casamento e outras formas de enxergar as relações afetivas é “O Espírito da Intimidade: Ensinamentos Ancestrais Africanos Sobre Maneiras de Se Relacionar”, da escritora Sobonfu Somé, do povo Dagara, que vive desde o século 14 no que hoje são os países Gana, Burkina Faso e Costa do Marfim.
De acordo com Sobonfu, os relacionamentos não se constroem a dois, mas sim envolvendo toda a comunidade e possuem uma dimensão espiritual – as pessoas só se encontram porque há um propósito que as quer juntas. Por outro lado, como acontece nas culturas colonizadas, a ausência de uma verdadeira comunidade deixa o casal totalmente responsável por si e pelas coisas à sua volta. Assim, a possibilidade de cada indivíduo atender suas necessidades fica reduzida. Sobre o amor romântico, reforçado excessivamente de forma nociva no ocidente, Sobonfu completa:
“Na cultura Dagara, o amor romântico simplesmente não funciona. O tipo de paixão, de emoção e conexão que os ocidentais buscam em um relacionamento romântico, o povo Dagara busca no espírito”
SOBONFU SOMÉ, PROFESSORA
Ou seja, refletir sobre essa quebra de padrão social, que foi criada sobre um patamar cristão, é confrontar uma norma que crê em um casamento e na constituição da “família tradicional” com um homem (cis), uma mulher (cis) e seus filhes. Buscar formas de se desprender da monogamia não é algo que acontece de uma hora para a outra, porque significa confrontar sentimentos e aprendizados que estão intrínsecos na nossa mente e reaprender a se relacionar. Ao mesmo tempo, a não monogamia não deve ser encarara como uma imposição dos “novos tempos” – e que tempos turbulentos esses, né.
Falar de não monogamia é mostrar que outras formas de se relacionar são possíveis – e que ser honeste consigo mesme é muito mais libertador.
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