Imagine um denso caldo cheio de referências, que leva música brasileira contemporânea, como Letrux, Tássia Reis e Xênia França. Agora, coloque uma alta dose de Grace Jones e umas pitadas de Lauryn Hill e Erykah Badu. Por fim, batidas eletrônicas oriundas das festas undergrounds de São Paulo.
A descrição acima não chega a dar conta, mas pode ser uma introdução à nova incursão de Aretha Sadick no mundo da música – dessa vez, também como compositora.
Nesta quarta-feira (26/09), a performer, modelo e cantora lançou a música Boneca Terrorista, já acompanhada de um videoclipe bafo (veja o vídeo no final da matéria).
Nos últimos anos, o nome de Aretha se tornou conhecido no meio da moda devido a sua estética levantar questões de gênero, raça e sexualidade. E seu novo clipe não é diferente.
A obra audiovisual é uma crítica aos padrões estéticos difundidos pela mídia e mercado de moda, ambos baseados na cisgeneridade e branquitude. Sim, a música é um close, mas também marca um posicionamento político de ocupação de espaços e valorização de corpos negros e trans. Numas das estrofes, Aretha dispara:
“Hackeando sistemas de dominação. Másculas toxinas. Inverto. Reverto. Refaço […] Mentira criada. Verdade plantada. Tatuada no tempo. Ideais de beleza inalcançáveis. Corpos de Barbie”
Como a arte é reflexo da vida, a ocasião não poderia ser mais oportuna. Aretha está em pleno processo de transição.
Neste momento de profunda reflexão, ela tem buscado respostas criativas para emergir contra as regras do Cistema (com C mesmo, fazendo referência ao padrão social, político e econômico baseado na cisgeneridade, que tanto oprime as dissidências).
De acordo com Aretha, o Cistema incita expressões de feminilidade e masculinidade tóxicas, além de tentar enquadrar os corpos trans dentro de sua lógica binária.
Entender o panorama não é muito difícil. Por exemplo, para ser aceita socialmente, uma mulher trans “precisa” ter implantes de silicone, cabelos longos e, às vezes, realizar cirurgias bem invasivas, como de redimensionamento de ossos do maxilar e pescoço.
E isso tudo tem a ver com a passibilidade, conceito que designa quando uma pessoa trans é socialmente lida como uma cisgênero.
Entre parte da população trans, a passibilidade é uma forma de buscar segurança, uma vez que, numa sociedade preconceituosa, uma pessoa parecer cis fará com que ela corra menos risco de sofrer violência urbana. Ainda, como exemplo, ela terá mais chances de entrar no mercado formal de trabalho.
E é exatamente aí que Boneca Terrorista mira seu poder de fogo. Parecer cis não é, necessariamente, a intenção das trans.
Além disso, a pressão social pela passibilidade faz com que indivíduos trans criem expectativas para o seu corpo que podem ser inalcançáveis – o que pode gerar ainda mais angústia.
“O mundo da moda e os meios de comunicação contribuem para uma padronização estética das pessoas trans que não deveria existir”, afirma Aretha. Sua aversão ao enquadramento opressor é explicitada no refrão:
“Se me querem boneca, não sou a que se espera. Se sou boneca, não a que se espera. Sou boneca de neca. A boneca terrorista”
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TRABALHO EM REDE
A produção musical de Boneca Terrorista é assinada por Adalu, produtor que combina Afro House e Afro Tech e pesquisa ritmos de raiz negra.
A dupla com Aretha se formou durante os preparativos para o show dela na última Virada Cultural, quando interpretou músicas de Grace Jones. A cantora jamaicana é uma de suas maiores referências estéticas e musicais.
Após ter feito outras apresentações, como no Sesc Santana, a dupla se separou há poucas semanas. Agora, Aretha será produzida pela Bandida Coletivo.
No clipe, a direção de fotografia é responsabilidade de Sladka Jerônimo, com assistência de Bernoch. Já a direção de arte é de Rodrigo Abreu. Magô Tonhon e Rapha da Cruz se encarregaram da maquiagem. Também participaram outros profissionais da cena paulistana LGBTQI+ (veja ficha completa no final do clipe).
O vídeo foi inspirado no trabalho de ativistas alemãs da década de 60, nomeadas bonecas terroristas. Na próxima sexta, o clipe será exibido na festa MARSHA!.
Além de compor e cantar, Aretha também é a responsável pela concepção e direção geral do filme. E não é por menos. Ela é uma multiartista, que tem como tríade de atuação moda, performance e música.
Natural de Duque de Caxias, na baixada Fluminense, Aretha teve seu primeiro contato com o canto ainda adolescente, ao ingressar num curso livre de teatro. Anos depois, aos 21 (hoje ela tem 29), estudou na Escola Técnica Estadual de Teatro Martins Pena, onde aprimorou diferentes técnicas.
Em 2011, participou do concurso Miss Gay na capital do Rio de Janeiro. Pouco antes de subir ao palco, foi batizada por seu amigo, o estilista Henrique Filho, e passou a encarnar sua drag. Posteriormente, foi uma das participantes da websérie Drag-se, onde fez inúmeras contribuições para o canal do Youtube. A partir daí, se tornou ícone na noite carioca.
Morando em São Paulo há três anos, Aretha focou sua carreira no mundo da moda. Fez diversos editoriais, desfiles e campanhas para marcas, como a Natura.
Um de seus últimos catwalks na passarela foi na 43ª Casa de Criadores, para a marca homônima do estilista Isaac Silva. A coleção do designer baiano contou somente com modelos trans e teve como um dos símbolos Xica Manicongo, mencionada em registros históricos datados de 1591 como a primeira travesti negra e não-índia do Brasil.
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NÃO HAVERÁ RETROCESSO
Boneca Terrorista é a primeira música de uma trilogia que Aretha está desenvolvendo. Ao avaliar o cenário musical LGBTQI+, ela afirma que estamos vivendo um boom com a popularização de artistas contemporâneos, como Liniker, As Bahias e a Cozinha Mineira e Linn da Quebrada.
No entanto, ela lembra que isso não é algo novo na história do Brasil. Para ela, os processos de libertação criativa acontecem de forma cíclica.
No passado, o movimento foi representado pela Tropicália e pelo Dzi Croquettes, grupo de teatro e dança brasileiro, que atuou de 1972 a 1976.
“De tempos em tempos há artistas que vão mostrar as suas vivências e usar a criatividade para mostrar o que está acontecendo em sua comunidade”, diz ela.
Contudo, ela sabe que a cada nova ascensão, forças conservadoras se movimentam em forma de repressão. E como não retroceder, Aretha?
“É necessário focar na coletivização, fortalecimento da base e fomentar uma rede de proteção feita por nós e para nós”, afirma.
Em outras palavras, é a estratégia de apoio e afetividade mútua e criação de novos espaços de socialização.
Outro ponto positivo do nosso tempo é que hoje há maior quantidade de artistas em exposição na mídia, não somente um grande ícone sob os holofotes.
Na cena drag, ela cita Pabllo Vittar, Gloria Groove e Aretuza Lovi.
E quanto mais pessoas engatilharem o microfone, maior será a potência delas.
FOTOS: Tatá Guarino