Autodeclaração LGBTI+ nas empresas favorece carreiras e políticas públicas

07/04/2025

Não se sabe quantos brasileiros são LGBTI+. Mas há empresas, como PwC e Veracel, que utilizam dados para assegurar os direitos da comunidade.

A assistente administrativa Yara Reis, 28 anos, prefere viver o presente sem muitas expectativas, mas celebra cada conquista. Ela não disfarça a felicidade com a conclusão da graduação em administração e a expectativa de trilhar uma carreira em gestão de facilities, área responsável por serviços e recursos que dão suporte ao funcionamento de uma empresa, como manutenção e segurança.

Natural de Porto Seguro, na Bahia, e moradora da cidade vizinha Eunápolis, Yara começou a trabalhar como jovem aprendiz aos 16 anos. Após empregos em imobiliária, restaurante e padaria, iniciou a transição de gênero, aos 22 anos. Na mesma época, ingressou na Universidade do Estado da Bahia. Pouco tempo depois, já era analista de recursos humanos numa clínica médica.

Os estudos e o trabalho iam bem. No entanto, após uma substituição de gerência, o clima na empregadora mudou. Yara foi impedida de realizar entrevistas com candidatos e teve reduzido o seu contato com públicos externos. Em contrapartida, passou a executar tarefas sem relação com o seu cargo, como gestão de estoque e secretariado.

“Comecei a sofrer transfobia no trabalho”, diz Yara. “Por isso digo que, ao mudar de emprego, foi como sair do inferno e ir para o céu.” Ela complementa:

“Hoje trabalho numa empresa em que sou reconhecida e avaliada pela qualidade e potencial do meu trabalho, e não pelo que a minha imagem pode representar para outras pessoas.”

Yara Reis, assistente administrativa da Veracel.

Yara trabalha na Veracel, uma das principais produtoras de celulose do país, com atuação em 11 municípios no extremo sul da Bahia. Fundada em 1991, a Veracel tem quase 3 mil funcionários, entre próprios e terceiros, e é uma das líderes no seu segmento.

Yara Reis, da Veracel, funcionária autodeclarada LGBTI+
YARA REIS, DA VERACEL: reconhecimento, evolução e felicidade no trabalho.

Há cinco anos, a Veracel iniciou o seu programa de diversidade. Tudo começou com a criação de um plano quinquenal (2020-2025), com 48 ações, sendo boa parte voltada à cultura organizacional, dados e conscientização.

Uma das ações foi a criação dos quesitos “orientação sexual” e “identidade de gênero” no cadastro de funcionários. Desde 2023, os trabalhadores fazem a autodeclaração num sistema online, igual já acontecia com dados de raça e gênero. As informações alimentam uma plataforma de BI (inteligência de negócios), sem revelar a identidade das pessoas.

Em apenas dois anos, a Veracel mapeou 95% dos funcionários. Hoje, 3,5% do quadro efetivo e de liderança são LGBTI+.

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A agilidade no mapeamento só foi possível devido a outra iniciativa. A Veracel também incluiu a diversidade como tema regular nas reuniões corporativas, adaptando o formato tradicional de segurança do trabalho. Nascia o programa Diálogos de Diversidade & Inclusão (DDI), que realiza debates, orientações e treinamentos regulares para os funcionários.

Há dois modelos de DDI. O primeiro, o DDI estruturado, tem duração de aproximadamente seis horas, e é um letramento inicial sobre o tema, abordando os cinco pilares de diversidade da empresa: Raça/Etnia, Gênero, LGBT, Gerações e PCD. O segundo, com frequência semanal, quinzenal ou mensal — de acordo com a área — são DDIs de manutenção, de quinze minutos, e abordam temas que estão em alta na mídia. Entre os assuntos recentes estão “Liberdade de Expressão” e “Respeito às Diferenças”.

“O letramento constante, realizado dentro da rotina dos funcionários, naturalizou o debate sobre diversidade na empresa, o que ajudou a impulsionar a autodeclaração LGBTI+.”

Flávia Guimarães, especialista de Diversidade e Inclusão da Veracel.

O caso da Veracel mostra que, independentemente de ser de um setor tradicional e estar instalada longe de grandes centros urbanos, tido como mais progressistas, é possível e necessário ter boas práticas de diversidade para reforçar a segurança psicológica nas equipes.

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MOTIVOS PARA A AUTODECLARAÇÃO LGBTI+

Hoje, não é possível dimensionar com exatidão a representatividade de pessoas LGBTI+ no Brasil. O grande apagão se dá porque a autodeclaração sobre Diversidade Sexual e de Gênero (DSG) não é contemplada pelo censo do IBGE. Sem dados, não é viável criar políticas públicas e decisões de investimentos para resguardar os direitos da população.

Por sua vez, as bases de dados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) — Caged e RAIS — também não reúnem informações sobre autodeclaração LGBTI+. Na prática, não se sabe, por exemplo, se profissionais da comunidade têm carreiras duradouras o suficiente para se aposentar, quantos contribuem com o INSS para acessar benefícios sociais e nem o tamanho da discriminação nas empresas, como receber salário menor do que seus pares heterossexuais.

“Nos casos de raça, gênero, diversidade sexual, identidade de gênero e pessoas com deficiência, garantia de direitos é garantia à vida, pois essas populações estão mais suscetíveis a morte física e social.”

Anatalina Lourenço da Silva, chefe da Assessoria de Participação Social e Diversidade do Ministério do Trabalho e Emprego.

Mulher negra e professora com longa carreira na rede pública estadual e municipal de São Paulo, Anatalina faz um paralelo com a luta do movimento negro. O Brasil, país de origem escravocrata e marcado pela desigualdade racial, só tipificou o crime de racismo em 1989.

A implementação de regras sobre discriminação só se deu em 2010, com o Estatuto da Igualdade Racial. Além disso, foi apenas em 2023 que o STF equiparou injúria racial ao crime de racismo; até então, ofensas raciais contra indivíduos recebiam penas mais brandas. Também em 2023 foi criada a Lei 14.553/23, que determina que empregadores (públicos e privados) devem incluir um campo para identificação étnico-racial em documentos trabalhistas. Um dos objetivos é exatamente coletar dados para embasar políticas públicas para assegurar os direitos dos trabalhadores e punir empregadoras racistas.

E o que é necessário para o movimento LGBTI+ obter conquistas semelhantes?

Para Anatalina, é necessário mobilização popular para criar um pacto entre os poderes legislativo e executivo e a sociedade civil. Um ponto de partida é ter representantes LGBTI+ em conselhos tripartites, como o Curador do FGTS, o Nacional do Trabalho e o Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador.

Outro ponto fundamental para popularizar a autodeclaração LGBTI+ é as empresas investirem na criação de espaços seguros e acolhedores.

“Se a empresa não oferecer segurança psicológica, os trabalhadores não vão realizar a autodeclaração LGBTI+ com medo de sofrer discriminação”, afirma Anatalina.

Parada do Orgulho autodeclaração LGBTI+
PARADA DO ORGULHO LGBT+: ainda não é possível saber quantos brasileiros pertencem à comunidade (foto: Eduardo Knapp/Folhapress).

Um ponto positivo é que existe uma gama de empresas comprometidas com a causa no Brasil. O Fórum de Empresas e Direitos LGBTI+, movimento empresarial com atuação permanente que reúne 164 empresas em torno de dez compromissos com a promoção dos direitos da população, realizou em março um levantamento sobre o panorama da autodeclaração LGBTI+.

Com apoio da To.Gather, empresa especializada na mensuração de resultados e impactos de diversidade corporativa, foi identificado que 54,9% das signatárias do Fórum realizam o cadastro DSG em documentos trabalhistas. Nessas companhias, 10,4% dos funcionários se identificam com uma ou mais letras da sigla.

“Partimos de um compromisso de mudança. O Fórum quer contribuir para que o país assimile informações sobre DSG nas suas estáticas para impactar positivamente também as políticas públicas.”

Reinaldo Bulgarelli, fundador do Fórum de Empresas e Direitos LGBTI+ e educador pioneiro em diversidade corporativa.

DIVERSIDADE E ÉTICA TÊM IMPACTO POSITIVO NOS NEGÓCIOS

Quando o tema é criação de espaços seguros para diversidades, a PwC Brasil é referência. Globalmente, há mais de 15 anos, a firma possui programas de desenvolvimento de carreira para mulheres, comunidade LGBTI+, pessoas negras, PCDs e intergeracional. No que toca à autodeclaração LGBTI+, a implementação foi a partir de 2018, com a parametrização de um sistema com quesitos DSG, utilizado nos 149 países em que a PwC atua.

Acontece que, no primeiro ano de implementação, a PwC só conseguiu mapear 20% dos (as) profissionais. De acordo com Renato Souza, diretor de inclusão e diversidade e sustentabilidade corporativa da PwC Brasil, era necessário comunicar melhor a proposta de valor da autodeclaração LGBTI+.

RENATO SOUZA, DA PWC: 60% dos funcionários fizeram autodeclaração em 2024 (foto: divulgação).

A PwC, então, criou campanhas afirmativas para mostrar que, de fato, não havia problema caso o(a) profissional pertencesse à sigla. Houve, inclusive, gestos simbólicos, como a implementação de cordão de crachá com as cores do arco-íris, que chegou a ser utilizado pelo sócio-presidente da companhia. Nos anos seguintes, a autodeclaração aumentou gradativamente, até alcançar 60% no ano passado.

Com os dados em mão, foi percebido que a maior parte dos(as) profissionais LGBTI+ era do quadro efetivo, e diminuía consideravelmente nas gerências e demais cargos de liderança. “A PwC é conhecida por resolver problemas importantes”, diz Renato. “Precisávamos fazer algo que realmente causasse mudanças”.

Com base nos dados obtidos, artigos científicos e parceiros externos, a PwC identificou quais eram as principais fragilidades da sua comunidade interna e como poderia reduzir as lacunas. Nascia o Out and Shine, programa de desenvolvimento de carreira, cujo objetivo é fomentar a autenticidade e potencializar a jornada de profissionais LGBTI+, com mentoria, conexões com o mercado e aprimoramento de competências.

A primeira edição do programa aconteceu em 2024. Houve treinamentos em soft skills, como Identidade, Diretos e Contexto Histórico-Social LGBT, e hard skills, com aulas de Dados, Inteligência Artificial e Financial Mindset, entre outras. Também foram oferecidos planos de desenvolvimento individual e mentorias.

Em paralelo, a PwC trouxe 11 especialistas consagrados(as) para trocar ideias e injetar uma boa dose de motivação nos(as) participantes. Entre os nomes estão Rita Von Hunty; João Silvério Trevisan, escritor ganhador do Prêmio Jabuti; Rodrigo Galindo, empresário e conselheiro de empresas; e Camila Farani, empreendedora, investidora e “tubarão” do Shark Tank Brasil. Além de especialista, Reinaldo Bulgarelli, do Fórum de Empresas e Direitos LGBTI+, foi o padrinho do Out and Shine.

“A PwC oferece programas de desenvolvimento para todas as nossas pessoas. Mas o Out and Shine é customizado para as particularidades das pessoas LGBTI+. Não podemos tratar os diferentes de forma igual. A carreira executiva também é viável para nós.”

Renato Souza, diretor de inclusão e diversidade e sustentabilidade corporativa da PwC Brasil.
FÓRUM PWC BRASIL DE INCLUSÃO E DIVERSIDADE: empresa é frequentemente eleita uma das melhores para se trabalhar.

Com carga total de 240 horas, o Out and Shine obteve ótimos resultados. Dos 40 participantes, mais da metade tiveram progressão de carreira (evolução ou promoção). Destes, 55% são mulheres; 45% pessoas negras; 10% pessoas com deficiência e 10% pessoas trans. Os números atestam a materialidade interseccional do programa.

“Precisamos tratar a diversidade como uma área de negócio”, diz Renato. “Logo, os resultados precisam ser mensurados e visibilizados, inclusive para defendê-la nos próximos ciclos de investimentos da firma.”

Como consequência do esforço, a PwC teve ganho em imagem de marca empregadora e recebeu prêmios, como o “Melhores empresas para pessoas LGBTI+ trabalharem”, do Human Rights Campaign, “Workplace Excellence”, do Out and Equal e “Selo de Direitos Humanos e Diversidade”, da Prefeitura de São Paulo [este último também vencido pela Emerge em 2024].

Hoje, mais de 7% das pessoas funcionárias da PwC são LGBTQIA+. E mais gente está chegando. No último programa de trainee, mais de 20% das pessoas selecionadas pertenciam à sigla.

Quer saber mais sobre como é ser LGBTI+ na PwC? Leia o relato de Carimie Romano, analista sênior. “Me declarar bissexual no trabalho foi uma libertação“, afirma ela.

FOTO DE ABERTURA: divulgação.

Quem escreveu

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Italo Rufino

Jornalista pós-graduado em marketing com dez anos de experiência. Trabalhou na revista Exame PME (Editora Abril), nos sites Diário do Comércio e Projeto Draft e na ONG de urbanismo social A Cidade Precisa de Você. Natural de Diadema (RMSP). Pai de uma criança de 10 anos. Fundador da Emerge.

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