Esta reportagem contou com apoio do Fórum de Empresas e Direitos LGBTI+.
Quem vê Fernanda Custódio, 35 anos, à frente de uma equipe de serviços de alimentação, até imagina que a sua paixão seja a culinária. Mas não é o caso. O que Fernanda gosta mesmo é de gestão. Fernanda é fundadora da Trava Truck, empresa que oferece buffets para eventos corporativos. Seu interesse pelo empreendedorismo é tanto que já participou de dois reality shows sobre o tema (Self-Made e Shark Tank).
Um dos diferenciais da Trava Truck é o posicionamento ESG. Mais do que um negócio de alimentação, a empresa funciona como uma plataforma de empregabilidade para pessoas trans. Por meio de parcerias com centros de acolhida públicos, como as unidades Florescer e João Nery, da prefeitura de São Paulo, a Trava Truck contrata e treina pessoas sem experiência, inserindo-as no mercado de trabalho.
Em 2024, foram mais de 60 contratações. Dessas, 70% foram de homens trans, sendo que 70% eram negros [parte da equipe aparece na imagem que abre esta reportagem; Fernanda é a loira no centro]. “Também temos colaboradores trans PCDs, tanto com mobilidade reduzida quanto neurodiversos”, afirma Fernanda.
A existência da TravaTruck é ainda mais necessária devido ao baixo índice de empregabilidade de pessoas trans no Brasil. Em 2024, um estudo realizado pela To.Gather, empresa especializada na mensuração de resultados e impactos de diversidade corporativa, consultou quase 300 empresas, que somavam 1,5 milhão de trabalhadores. O levantamento apontou que pessoas trans ocupam apenas 0,38% dos postos formais de trabalho no país.
A dificuldade de acesso ao mercado formal tende a colocar pessoas trans em situação de precariedade e, consequentemente, maior vulnerabilidade à violência.
Contrariando as estatísticas e as opressões do “Cistema”, a TravaTruck cresceu 45% em 2024. Cerca de 70% do faturamento foi proveniente de contratos com grandes empresas, como Microsoft, Takeda, Elo, Nivea e DocuSign.
Embora seja muito grata pelos clientes, Fernanda faz ressalvas. Mulher trans, a empreendedora afirma que enfrenta o desafio de ser percebida como uma fornecedora para além de campanhas de orgulho LGBTQIA+.
“Quando uma grande empresa contrata uma fornecedora diversa somente em junho, há o uso da causa LGBTI+ para criar uma falsa aparência de inclusão e diversidade. As empresas podem nos contratar durante o ano inteiro, pois precisamos gerar receita todos os meses para sobreviver.”
Fernanda Custódio, fundadora da Trava Truck.
Outra crítica refere-se à baixa compreensão que algumas empresas têm sobre a realidade de fornecedoras diversas, o que reflete em exigências “sem noção”. Para que as parcerias sejam justas, é necessário adaptar tópicos contratuais “padrão de mercado”, como realizar o pagamento somente após 90 dias.
“Há exigências que são totalmente inviáveis e põem em risco a operação”, diz Fernanda. “Tenho educado as empresas a realizar 50% do pagamento no ato da contratação e 50% logo após a entrega do serviço”.
GESTÃO DE FORNECEDORES: MENOS RISCOS E MAIS EFICIÊNCIA
À medida que as empresas amadurecem, a relação com fornecedores ganha novos contornos. A simples relação de compra e venda torna-se uma área estratégica. Além de garantir eficiência, uma boa gestão de cadeia de suprimentos tem três grandes objetivos: cumprir requisitos legais e regulatórios, mitigar riscos financeiros e socioambientais e ter alinhamento à governança institucional.
Em abril, o Fórum de Empresas e Direitos LGBTI+, movimento empresarial com atuação permanente que reúne 164 empresas em torno de dez compromissos com a promoção dos direitos da comunidade, realizou uma pesquisa para identificar como suas signatárias têm trabalhado o tema diversidade sexual e de gênero (DSG) na relação com fornecedores.
Em parceria com a To.Gather, foi constatado que 51,6% dos respondentes adotam ao menos uma prática DSG. Dessas, 59,4% contratam fornecedores LGBTI+ para realização de eventos e 56,3% para serviços de comunicação.
Pouco mais da metade exige de seus fornecedores políticas, contratos e termos com compromissos compartilhados. Já 46,9% fornecem seus próprios materiais educativos de DSG com as empresas da cadeia de suprimentos.
De acordo com Raphael Pagotto, secretário adjunto do Fórum, ter empresas que consideram a DSG na relação com fornecedores é estratégico para a causa LGBTI+, uma vez que cada grande empresa possui centenas de fornecedores. Assim, o tema da DSG ganha capilaridade por todo o Brasil.
“Há fornecedoras LGBTI+ que escolhem não revelar o seu posicionamento, que poderia ser uma vantagem competitiva, devido ao receio de sofrer discriminação nos processos de compra”.
Raphael Pagotto, secretário-adjunto do Fórum de Empresas e Direitos LGBTI.
Outro dado revelado pela pesquisa é que quase 10% das empresas com boas práticas são filiadas à Câmara de Comércio e Turismo LGBT do Brasil.
Fundada em 2009, em São Paulo, a Câmara promove o desenvolvimento socioeconômico e cultural da comunidade LGBT por meio do apoio ao empreendedorismo e às relações comerciais. Seus focos de atuação incluem: credenciar e certificar empresas e profissionais liberais comprometidos com a diversidade sexual e qualificar empreendedores LGBTI+.
Desde 2021, a Câmara mantém o programa Fornecedores Diversos, que conecta empreendedores a grandes contratantes, como Accor, Basf, Accenture e Dow. Também realiza,anualmente, a Conferência Internacional da Diversidade e Turismo LGBT. Na edição do ano passado, foram três dias de evento, com cerca de 40 painéis.
No entanto, 2025 tem sido um ano desafiador. Segundo Ricardo Gomes, presidente da Câmara, empresas que apoiavam a organização até recentemente estão se desfiliando.
“Há empresas com atuação nacional que estão importando dos Estados Unidos uma agenda contra a diversidade e os direitos humanos”, diz Ricardo.
Para Reinaldo Bulgarelli, fundador do Fórum, diversidade é uma questão de ética. Ele ressalta que, em Direitos Humanos, o arcabouço legal brasileiro é mais robusto do que o norte-americano.
Assim, empresas estrangeiras que operam no Brasil, que não estão conseguindo dialogar com as suas matrizes, poderão ser penalizadas caso desrespeitem normas nacionais. Além disso, tendem a se afastar do público LGBTI+, que também cobrará condutas inadequadas.
Em relação a fornecedores diversos, Reinaldo afirma que o empreendedorismo LGBTI+ surge principalmente por necessidade, assim como ocorre entre pessoas negras e mulheres.
“Devido ao preconceito, parte da comunidade LGBTI+ não consegue acessar o mercado de trabalho formal ou, quando acessa, passa anos na mesma posição, numa estagnação de carreira. Daí acabam indo para o empreendedorismo.”
Reinaldo Bulgarelli, Secretário Executivo do Fórum de Empresas e Direitos LGBTI.
EQUIDADE DE GÊNERO E ACOLHIMENTO PARA PESSOAS TRANS NO SETOR AUTOMOTIVO
Fundada em 2018, a Casa Neon Cunha é uma ONG que abriga e acolhe a população LGBTQIAP+ em situação de extrema vulnerabilidade da Região Metropolitana de São Paulo.
O nome da casa é uma homenagem à ativista Neon Cunha, mulher, negra, ameríndia e transgênera, defensora dos direitos das pessoas negras e LGBTQIAP+ [já perfilada pela Emerge duas vezes].
Em 2024, no Dia Nacional da Visibilidade das Pessoas Travestis e Transexuais (29/1), a Volkswagen do Brasil e a Fundação Grupo Volkswagen anunciaram uma doação de R$70 mil à ONG; as três organizações têm sede na cidade de São Bernardo do Campo.
Os recursos foram destinados à manutenção das atividades de acolhimento, abrigo e apoio psicossocial e jurídico junto à população atendida pela casa.
Além do repasse financeiro, a Volkswagen ofereceu um programa de mentoria coordenado pela ONG Parceiros Voluntários. A consultoria de governança e fortalecimento institucional melhorou a gestão da Casa, seu planejamento financeiro e a capacidade de captação de recursos.
O projeto foi idealizado pela área de diversidade e inclusão da Volkswagen, em parceria com o Colorindo, grupo de trabalhadores voluntários da empresa que atua em prol da causa LGBTI+. Em fevereiro, o projeto venceu a categoria ESG do Prêmio Ser Humano, promovido pela Associação Brasileira de Recursos Humanos.
A Volkswagen é referência em relação com fornecedores. A partir de 2016, a empresa inseriu tópicos de sustentabilidade e direitos humanos nos documentos que norteiam seus processos de compras. Os fornecedores precisam se comprometer a atuar com as mesmas regras ESG da Volkswagen, como não realizar discriminação com grupos minorizados.
Já em 2018, a empresa passou a aplicar um questionário de sustentabilidade para qualificar as fornecedoras. As solicitações envolvem desde a correta extração de matérias-primas até a conscientização de subcontratados sobre direitos humanos.
Atualmente, a Volkswagen conta com uma área, com três funcionários, dedicada exclusivamente à gestão ESG de cadeia de valor. Uma das funções é realizar treinamentos para as fornecedoras aumentarem suas notas.
“Em 2024, cerca de 270 fornecedores receberam treinamentos específicos sobre ESG e Direitos Humanos. Para alertar o público, há estudos de casos reais, como de empresas que praticavam desigualdade salarial baseada em gênero e despejo irregular de resíduos em rios”.
Fernanda Talarico, analista Sênior de Sustentabilidade, Gestão ESG da Cadeia de Valor, da Volkswagen.
A empresa também disponibiliza uma cartilha de diversidade aos fornecedores. Com mais de 40 páginas, o material traz um glossário de termos (como “Interseccionalidade”), orientações sobre como tratar pessoas de grupos minorizados (mulheres, LGBTIA+, pessoas +50 anos, negras e com deficiência), apresentação dos grupos de diálogos internos; leis brasileiras de diversidade e inclusão e canais de denúncia do grupo.
“Não generalize comportamentos ou aparências. Não diga que uma pessoa ‘parece gay’ ou ‘age como lésbica’. Tais estereótipos são ofensivos e reduzem a individualidade de cada pessoa.”
Cartilha Diversidade e Inclusão da Volkswagen.
E não para por aí. A empresa possui mais dois programas para fornecedores. O Sustainable Chain (Cadeia Sustentável) é uma plataforma que reúne 40 fornecedores estratégicos para o compartilhamento de aprendizados, soluções e oportunidades.
Já o The One é uma premiação anual, com 12 categorias, que reconhece as melhores práticas. Nas edições de 2024 e 2023, as vencedoras na categoria “Social e Diversidade” foram, respectivamente, a fabricante de aço Usiminas e a indústria de assentos e sistemas elétricos Lear; esta última também é signatária do Fórum de Empresas e Direitos LGBTI+.
Segundo Fernanda, um dos critérios de seleção é o impacto real. Ou seja, iniciativas que beneficiam o maior número de pessoas e têm potencial de transformar suas vidas. Ela destaca, por exemplo, programas de estágio e trainee exclusivos para pessoas negras; contratação de egressos do sistema prisional e projetos voltados à descarbonização e economia circular.
Por fim, Guilherme Nascimento, supervisor Técnico de Diversidade e Inclusão da empresa, lembra que a Volkswagen é a única montadora a se tornar signatária de cinco fóruns temáticos de diversidade e direitos humanos. Além do Fórum LGBTI+, integra o Movimento Mulher 360, a Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial, a Rede Empresarial de Inclusão Social (inclusão de PcDs) e o Fórum Gerações e Futuro do Trabalho.
LUGAR DE MULHERES E LGBTI+ É ONDE HÁ RESPEITO E OPORTUNIDADE
No início de maio, cerca de 10 alunos ingressaram em um curso de elétrica promovido pela Montisol. Com sede em São Luís do Maranhão e operações em Barcarena, no interior do Pará, a empresa fabrica e monta estruturas metálicas. O diferencial do curso é ser destinado exclusivamente a pessoas LGBTI+ e mulheres negras.
O programa é realizado em parceria com o Centro de Ensino Médio e Profissionalizante do Maranhão e conta com o apoio do Tribunal de Justiça do Estado.
Com duração de 25 dias, o curso tem abordagem teórica e prática para que os participantes aprendam habilidades necessárias para o mercado de trabalho. Essa é a quarta edição do programa, que já teve turmas de outras áreas de manutenção e montagem, como soldagem.
No ano passado, a Montisol foi uma das 20 fornecedoras homenageadas pela Hydro, fabricante de alumínio que opera no Pará desde 1995. Desde 2024, a Hydro mantém um programa de desenvolvimento de fornecedores com foco em direitos humanos e sustentabilidade na região norte do Brasil.
Com duração de doze meses, o programa começa com um diagnóstico dos fornecedores, que são selecionados de acordo com o volume de contratos e nível de dependência com a Hydro. Posteriormente, as empresas recebem treinamentos e desenvolvem um plano de ação, que contempla tópicos como equidade de gênero, diversidade e inclusão. A aplicação do plano é acompanhada por mentores especializados em ESG.
O programa da Hydro é realizado em parceria com o Instituto Ethos, organização da sociedade civil que mobiliza, sensibiliza e apoia as empresas na gestão socialmente responsável de seus negócios.
De acordo com Ana Lucia Melo, diretora-adjunta do Ethos, um dos desafios do programa é romper com estereótipos sobre direitos humanos e mostrar às fornecedoras que o tema também pode, e deve, ser aplicado dentro das empresas.
“Num momento de disputa e polarização, precisamos desmistificar a diversidade para não cair no risco de ser excludente. Ao reduzir as barreiras de entrada para grupos minorizados, a empresa está praticando direitos humanos.”
Ana Lucia Melo, diretora-adjunta do Ethos.
Na missão de levar o tema ESG para empresas do interior do Brasil, muitas ainda familiares e de pequeno e médio porte, Ana tem tido bons resultados. Um dos avanços é mudar o paradigma de que mulheres não têm interesse por determinadas funções, como mecânica e operação de máquinas pesadas. Historicamente ocupados por homens, esses ambientes tendem a ser poucos convidativos e, às vezes, até hostis para elas — o real motivo da baixa adesão.
“Temos percebido que, quando a empresa torna os ambientes de trabalho atrativos e respeitosos, mulheres e LGBTI+ os ocupam com qualidade”, finaliza Ana.
FOTOGRAFIAS: divulgação.