Emerge Mag lança série de entrevistas para debater as principais demandas de São Paulo. Nossa primeira convidada é Aline Cavalcante, cicloativista e fundadora da CCMob – Clima e Mobilidade Ativa.
No início de novembro, a ciclista Marina Kohler Harkot foi mais uma vítima da violência no trânsito paulistano. A jovem de 28 anos morreu ao ser atropelada enquanto andava de bicicleta numa ciclovia na zona oeste de São Paulo. O motorista José Maria da Costa Junior, que atropelou Mariana, não prestou socorro e fugiu do local do acidente – ele foi preso dias depois e indiciado por homicídio doloso, pois assumiu risco de matar ao beber e dirigir em alta velocidade. Mariana era cicloativista, pesquisadora de mobilidade urbana e tinha a bicicleta como principal meio de transporte. Um dos focos de estudo Marina era a mobilidade ativa, conceito que engloba o transporte de pessoas apenas por instrumentos não motorizados, como bicicletas e caminhar.
Infelizmente, o caso de Marina não é isolado. De acordo com o Relatório Anual de Acidentes de Trânsito, elaborado pela Companhia de Engenharia de Tráfego, foram 719 mortes no trânsito na cidade de São Paulo em 2019. Nessa violência sobre o asfalto, os mais vulneráveis são os pedestres, que somaram 359 mortes, e os ciclistas, com 31 casos – embora o número seja inferior aos demais casos, o que chama atenção é a taxa de crescimento, que foi de 63% em 2019.
Além de violenta, a mobilidade em São Paulo é lenta. Em 2020, após um hiato no meio do ano devido ao isolamento social, o índice de lentidão no trânsito na capital atingiu 104 quilômetros em setembro, a maior média registrada para o mês.
“Umas das maiores carências de São Paulo é um olhar amplo sobre a mobilidade urbana, com pouco investimento em transporte coletivo, mobilidade ativa e mais tecnologia nos combustíveis”, afirma Aline Cavalcante, fundadora da Coalizão Clima e Mobilidade Ativa (CCmob).
A CCMob surgiu em 2017, após uma visita de Aline a Patrícia Espinosa, secretária-executiva da UNFCCC (Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima). Na ocasião, Aline entregou a Patrícia o Manifesto pela Mobilidade Ativa, um texto construído coletivamente e assinado por diversas organizações do setor que define a importância de pedestres e ciclistas para um futuro de baixo carbono.
Nascida e criada em Aracaju, capital sergipana, e jornalista de formação, Aline se jogou no mundo da mobilidade urbana ao se mudar para São Paulo em 2009. No mesmo ano, ela e outros ativistas fundaram a Ciclocidade, associação sem fins lucrativos que desenvolve pesquisas e integra grupos de trabalho com foco em políticas públicas em mobilidade urbana. Em 2015, Aline foi uma das protagonistas do documentário sueco Bikes vs Carros, que aborda como a indústria automobilística influencia políticas públicas – o filme está disponível no YouTube. Em 2018, Aline integrou a lista “Cinco Visionários Urbanos da América Latina” da revista norte-americana America’s Quarterly. Atualmente, além das funções na CCMob e Ciclocidade, Aline é Conselheira Regional Sudeste da União de Ciclistas do Brasil; Conselheira Participativa Municipal Região Butantã e integrante do Ciclocomitê Paulista.
Na semana que antecede o 2º Turno das eleições para prefeitura de São Paulo, a Emerge Mag publicará a série de entrevistas Cidade Que Queremos, em que representantes de organizações de áreas-chave da gestão pública abordarão as demandas da cidade. Aline é a primeira convidada, no tema mobilidade urbana. Leia a seguir a entrevista com a cicloativista:
OS PROBLEMAS
Aline Cavalcante: São Paulo é uma cidade de 12 milhões de habitantes e tem impacto direto em mais de 20 milhões de pessoas ao considerarmos a sua Região Metropolitana. É uma megacidade e, como todas as megacidades, a questão da mobilidade urbana é um grande gargalo e questão estrutural para a qualidade de vida – ou falta dela.
Ao observarmos outras cidades do porte de São Paulo, é possível identificar que as soluções de mobilidade passam, essencialmente, pela multiplicidade de opções de transporte e sobretudo no investimento maciço em transporte coletivo. Portanto, independente das soluções particulares que cada realidade urbana apresenta (considerando seus aspectos culturais, orçamentários, relevo, clima, economia, etc), a noção é de que é preciso oferecer uma diversidade de alternativas acessíveis e seguras para que as pessoas possam exercer seus direitos de acessar a cidade e de ir e vir.
“A maior carência da nossa cidade é esse olhar amplo sobre a mobilidade urbana, investimento em transporte coletivo, mobilidade ativa e mais tecnologia nos combustíveis”
Hoje temos uma cidade (e um país) que prioriza o automóvel, um veículo individual motorizado. É só olhar para o orçamento municipal e os gastos anuais com mobilidade: pedestres, ciclistas e usuários do transporte coletivo têm investimentos muito menores em relação as políticas que beneficiam os motoristas de carros: asfalto novo, acelera sp, desenho viário, benefícios fiscais, estacionamento gratuito em via pública, entre outros, que torna notória qual a prioridade da mobilidade de São Paulo. Hoje apenas 30% da população da cidade utiliza automóvel, mas o espaço público dedicado a eles é de 80%.
O resultado concreto disso é um aumento do número de carros nas ruas e todos seus impactos diretos e indiretos, como congestionamento, contaminação do ar, mortes no trânsito, violência urbana, barulho, entre muitas outros – e toda a sociedade paga pelos efeitos.
COMO CHEGAMOS ATÉ AQUI
Há décadas, o Brasil optou pelo desenvolvimento nacional com base no rodoviarismo. E todos os estados e cidades, em geral, acompanharam essa tendência muito inspirada no desenvolvimento dos norte-americanos, com dependência excessiva aos combustíveis fósseis provenientes do petróleo. Isso é uma decisão política clara. Brasília, a capital federal, nasce a partir desse espírito e é um símbolo de cidade carrocrata. Em São Paulo, o Plano de Avenidas de Prestes Maia marcou o início do processo de destruição de linhas de bonde e de trem. Destruiu também cursos de água e rios para dar lugar a grandes avenidas. Os carros se transformaram, conscientemente, em um símbolo de status e de progresso, ao custo do desinvestimento nos transportes coletivos e nos ativos – pedestres e ciclistas sequer eram considerados meios de transporte.
A motorização do país é um plano político e econômico. Em regiões mais pobres, periféricas ou afastadas dos centros urbanos, as motos viraram uma epidemia. Existe uma cadeia de setores que se beneficiam muito da destruição das cidades, desde o setor petroleiro, até de borracha, asfalto, postos de gasolina, oficinas mecânicas, auto escolas, montadoras e a indústria automobilística. Todas elas trabalham arduamente com lobby em todos os poderes para manter e ampliar seus privilégios.
“Hoje, ao não investir em soluções de mobilidade com foco em diminuir o número de carros nas ruas, continuamos “enxugando gelo” sem atacar o problema na raiz”
BONS EXEMPLOS
No Brasil, a cidade de Fortaleza, no Ceará, tem sido hoje uma das mais a frente das ações de mobilidade urbana, investindo em planejamento e projetos com foco em melhorar o transporte coletivo, reduzir o assédio a mulheres nos ônibus (as mulheres são quem mais andam a pé e transporte público no país), conectando a uma extensa rede cicloviária, de bicicletas compartilhadas e de mobilidade a pé.
Na América Latina, cidades como Bogotá, Cidade do México, Buenos Aires, Santiago, entre outras, apresentaram planos de investimentos em ciclomobilidade.
No mundo você vê Nova Iorque, Londres, Paris desenvolvendo planos robustos de desincentivo ao carro e aos combustíveis fósseis, sobretudo diante da crise ambiental e climática provocada pela queima da gasolina e diesel.
Aqui no Brasil, além dessa dificuldade em enxergar a dependência ao petróleo, ao setor automobilístico e ao rodoviarismo como algo extremamente nocivo para as pessoas, as cidades, a logística de cargas (vide greve dos caminhoneiros) e o planeta, há nesse momento um negacionismo as Mudanças Climáticas que definitivamente torna as discussões muito mais difíceis de avançar pra onde precisam.
PARA NÃO REPETIR OS MESMOS ERROS
Investir em estímulo ao uso do carro e em bem estar aos motoristas é a política pública mais ineficiente possível para a mobilidade urbana. Quanto mais carros nas ruas, pior para todos. A qualidade de vida diminui e a violência urbana piora significativamente. É só olhar o que as melhores cidades do mundo estão fazendo, basicamente reestruturando suas vias públicas a partir da lógica da vida e das pessoas, humanizando as cidades.
“Nenhuma cidade do mundo resolveu seus problemas de mobilidade a partir do automóvel”
É preciso encarar essa realidade e mudar de vez o paradigma da mobilidade e dos transportes em nosso país e em nossas cidades. Muitas vidas são perdidas diariamente e esse impacto que também é econômico e na saúde precisam entrar na conta das políticas de mobilidade. Existe uma cadeia de erros sendo repetidos há décadas.
Fotografias: Arquivo pessoal