A redutora de danos Matuzza Sanfoka, fundadora da Casa Chama, organização que oferece serviços socioculturais e de saúde, fala dos desafios que o próximo prefeito terá que lidar
Cobertores estirados sobre dutos de ventilação do metrô, em que os furinhos da grade servem de apoio para vassouras. Ao lado, garrafas amassadas de água turvas e caixas de papelão, que guardam roupas, sapatos e mais poucos utensílios pessoais. As mesmas caixas, quando desmanteladas, terão outra serventia: serão “colchões” para proteger do frio do cimento sujo. Infelizmente, quem passa pelo centro de São Paulo já se acostumou com a grande quantidade de pessoas em situação de rua. E, nos últimos anos, essa população aumentou ainda mais. De acordo com um censo da prefeitura de São Paulo, a quantidade de pessoas em situação de rua cresceu de 15.905, em 2015, para 24.344 em 2019 – um aumento de 53% no período e o maior desde que o levantamento começou a ser feito. Entre essas pessoas, 69% são negros.
E, pior que tá, fica: a pandemia. Hoje, a cidade de São Paulo tem mais de 399 mil casos confirmados de Covid-19, com 14.260 mortes – e o número segue crescendo uma vez que a pandemia ainda não acabou. Além do caos na área da saúde, a Codiv-19 causou uma crise social e econômica e mostrou ainda mais a desigualdade na cidade. Uma das evidências é que o maior número de mortes aconteceu em distritos periféricos, como Sapopemba, Brasilândia e Grajaú.
“A recomendação da Organização Mundial da Saúde para evitar o contágio de Covid-19 é lavar as mãos e ficar em casa. Mas como faz quem não tem água e sabão e nem moradia?”, diz Matuzza Sankofa, redutora de danos do centro de convivência É de Lei, que atua em redução de riscos sociais e à saúde associados à política de drogas desde 1998.
Com fala suave e assertiva, Matuzza também é diretora e fundadora da Casa Chama, organização que oferece ações socioculturais e de saúde com foco em pessoas transvestigêneres, como travestis e transsexuais. Na organização, ela presta serviços de saúde, cuidados em terapia hormonal e faz encaminhamentos de pacientes para a rede pública.
Logos nos primeiros meses da pandemia, a Casa Chama (já perfilada pela Emerge) criou uma vaquinha online para entregar cestas básicas para mais de 350 pessoas. Vale destacar que a população trans tende a trabalhar na informalidade e sempre esteve rodeada pelos mesmos problemas: falta de moradia e alimentação e baixo acesso a sistemas de retificação de documentos, que a impede de ter acesso a cuidados de saúde.
Natural de Itabira, em Minas Gerais, e morando em São Paulo desde 2019, a jovem de 28 anos se dedica há sete à profissão de redutora de danos. Ela também é curadora do projeto Transgressoras, que acolhe mulheres trans e travestis egressas dos sistema prisional, com formações artísticas e produção de materiais de arte que denunciam as violações de direitos humanos que essas mulheres sofrem. O Transgressoras é uma iniciativa do coletivo anarquista de arte e ativismo CiA dXs TeRrOriStAs e acontece na Casa Florescer 2.
Na semana que antecede o 2º Turno das eleições para prefeitura de São Paulo, Matuzza é a segunda convidada da série Cidade Que Queremos, em que pessoas que atuam em áreas-chave da gestão pública abordarão as demandas da cidade. Leia a entrevista:
OS PROBLEMAS
Matuzza Sankofa: Há várias demandas relacionadas a questões de saúde que o próximo prefeito vai encarar. Mas a questão primordial tange dois públicos que são inviabilizados e não recebem a atenção devida. A primeira é a população trans. Em São Paulo, uma das maiores cidade da América Latina e com grande número de pessoas trans, só existem três centros de saúde integral e que oferecem cuidados em terapia hormonal. Porém, neste exato momento há a ameaça real do fechamento do ambulatório trans da UBS Santa Cecília, que atende pouco mais de mil pessoas trans na região central da cidade.
O segundo público em situação de vulnerabilidade em saúde é o de usuários de drogas e, em especial, a situação da Cracolândia e como ela tem sido conduzida – um dos maiores exemplos do que não fazer em relação a gestão pública. Nos últimos anos, houve desmantelamento, falta de investimentos e precarização de serviços complementares a essas pessoas.
“O cuidado com usuários de drogas deveria ser direcionado às equipes municipais de saúde, de assistência social e de moradia. No entanto, essas pessoas são ‘cuidadas’ por equipes de segurança pública, forças policias e Guarda Civil Metropolitana – e, dessa forma, não resolve”
Por exemplo, há anos é recorrente ações em que a guarda municipal chega lá e muda a Cracolândia de uma rua para outra. Mas como fica o cuidar dessas pessoas?
Além disso, é necessária uma descentralização dos serviços de saúde, para que cada vez mais exista especialidades médicas e atendimento de urgência nas periferias da cidade.
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COMO CHEGAMOS ATÉ AQUI
A cidade mais rica do país tem cerca de 30 mil pessoas em situação de rua. Isso se dá devido ao histórico do nosso país, que viveu quase 400 anos de escravidão. A maioria das pessoas que marginalizadas e em situação de extrema vulnerabilidade são pretas. É um problema que vem de longe e continua até hoje devido à falta de investimentos das gestões municipais e estaduais. Esses gestores não tiveram – e não tem – o olhar e o interesse em cuidar dessas pessoas.
“Essa situação é um reflexo do genocídio das pessoas pretas do país, mascarado sob o tema de “Guerra às Drogas”, mas é um genocídio de uma população específica, que contempla também as mulheres e pessoas LGBTQI+”
BONS EXEMPLOS
Para citar um bom exemplo, nem precisamos olhar para longe. Há uma experiência em São Paulo mesmo, o programa De Braços Abertos, criado na gestão do Fernando Haddad, mas que foi desmantelado na gestão seguinte.
O programa propunha uma intersecção de políticas públicas para a população em situação de rua, contemplando também aquelas em situação de adicção. Havia políticas de moradia; acesso à saúde, educação, assistência social e renda. Foi uma experiência exitosa e é um exemplo do que pode ser feito.
Ao observamos outros países que tratam o uso de droga como um problema de saúde e assistência social, veremos que há a oferta de moradia, salas de uso e ações de redução de danos por meio de projetos que são cocriados entre o poder público e a população afetada. É difícil, mas com empenho se resolve – e dá para resolver.
PARA NÃO REPETIR OS MESMOS ERROS
Olhar para a atual gestão da prefeitura de já nos mostra muito em relação ao que não tem sido exitoso em relação às populações trans e em situação de rua, mas que também se replica a população pobre em geral. Por exemplo, se avaliarmos o período da pandemia, é necessário mensurar a responsabilidade do poder público e a sua parcela na crise de saúde, econômica e social causada pela Covid-19. Na periferia, há uma falta de acesso à assistência social e saúde absurda e desumana. Se olha para as pessoas em situação de rua e usuárias de droga, a situação é pior ainda. Em plena pandemia, a população trans corre o risco de perder um dos três equipamentos que oferecem saúde integral – mesmo em meio a um pleito eleitoral. Isso mostra uma gestão que prioriza pessoas já privilegiadas e abandona (e marginaliza) pessoas que são violentadas pela presença (e ausência) do Estado: pobres, pretas, periféricas, LGBTQI+ e em situação de rua.
FOTOGRAFIAS: Nu Abe