Nascido em Alto do Cabrito, no subúrbio ferroviário de Salvador, Cleidson Marques, 27 anos, desembarcou na cidade de São Paulo há cinco meses. O motivo: expandir os negócios da CM Brand, sua marca de moda nordestina voltada ao público LGBTQIA+. Não pense que o empreendedor criativo precisasse, necessariamente, de São Paulo para bombar o negócio. Tanto é que, ainda na Bahia, a CM Brand iniciou exportação de sungas (Portugal e Estados Unidos), via parceria com a marca também baiana Dendenzeiro. Na real, o que encantou Cleidson foi a cidade ser um ponto de encontro com grande efervescência cultural, que nasce da diversidade humana em meio ao concreto e aço.
Embora a oferta de emprego e nível salarial da região – chamariz para os migrantes em décadas passadas – tenha diminuído, São Paulo é um lugar onde as culturas, temperos, etnias e credos se encontram. Além disso, congrega importantes eventos de moda como a Feira Nacional da Indústria Têxtil, Feira Internacional de Tecelagem, São Paulo Fashion Week e Casa de Criadores, que transformam a cidade num grande laboratório de tendências do setor.
“Aqui também tenho uma maior gama de matéria-prima para criar peças menos óbvias”, diz Cleidson.
Entre os diferenciais de impacto social da marca de moda nordestina se destaca a produção, com remuneração justa, feita por microempreendedoras negras e afro-indígenas do bairro de Perus, na zona norte de São Paulo – o mesmo acontece na unidade produtiva de Salvador. Além disso, a CM se vale do reaproveitamento de materiais para a criação de novos produtos.
Ah, mas não sejamos assim tão românticos. Do “Grajaú ao Curuzu” há desafios. A falta de recursos financeiros, políticas públicas de educação e programas de incubação e aceleração de negócios criativos se mantêm como dificuldade.
“Estamos sempre buscando estratégias de venda e enxugando o orçamento para continuar fazendo a diferença com nosso negócio”, diz Cleidson.
Fundada em 2019, a CM ainda não garante renda mensal suficiente para o empreendedor, que segue trabalhando na sua área de formação, a arquitetura.
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FOMENTO A ECONOMIA LOCAL
Se por um lado os criativos nordestinos de moda têm em São Paulo a oportunidade de acessar novos mercados, por outro a cidade tem neles a chance de fazer rodar a economia. Empresas de moda, independentemente do tamanho, movimentam redes, geram emprego e utilizam corpos, vivências e criatividade para ressignificar territórios e identidades.
Parte significativa des empreendedores mapeades pelo projeto Emerges Potências da Moda tem sua produção feita por costureiras de periferia, além de oferecer cursos de corte e costura. É o caso do estilista Sandro Freitas, 26 anos, fundador da Berimbau Brasil, marca de moda nordestina com inspiração intercultural e afro-indígena. Criado pelos avós – responsáveis por outros cinco netos – em Santa Luzia do Paruá, interior rural do Maranhão, Sandro dá aulas na rede Sesc de São Paulo.
Hoje a Berimbau fatura 8 mil reais por mês. Os principais canais de venda são o Instagram e Whatsapp. Embora a maior parte dos consumidores seja de São Paulo, a marca tem vendas recorrentes para clientes do Maranhão, Pernambuco, Bahia, Tocantins e algumas capitais do sudeste. Também há vendas internacionais, especialmente para a Alemanha, Austrália e Itália.
Sandro reforça que um diferencial da Berimbau é o fator identidade. Usar as peças da marca não é apenas sobre consumir ou “andar na moda”, mas principalmente ter a possibilidade de se vestir de acordo com sua identidade, raízes, crenças e valores culturais. “E isso cria uma relação de afeto com a roupa”, afirma o criativo.
Nos últimos 12 meses, a Berimbau teve grandes conquistas. Em meio à crise econômica e social causada pela pandemia, a marca de moda nordestina abriu seu ateliê, instalado em José Bonifácio, distrito da zona leste de São Paulo. Em junho, a Berimbau apresentou a coleção Jamaica Brasileira na edição de 25 anos da Casa de Criadores. Embora afirme que a necessidade do reconhecimento seja questionável, Sandro comenta:
Fundada em 2018, a marca de moda nordestina conta com uma rede de parceiros e apoiadores composta por mulheres, negros, LGBTQI+, indígenas, pessoas gordas, mães e PCDs, entre eles neurodivergentes.
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MIGRAÇÃO NORDESTINA TRANSFORMA SÃO PAULO
Cleidson Marques, Sandro Freitas e Karoline Pinheiro – esta última eu, a repórter que vos escreve, descendente de sergipanos e baianos. Ou seja, temos nomes, sobrenomes e histórias de conquistas e sucesso, individuais e coletivas.
De acordo com o sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, o Nordeste é o berço da brasilidade, e irradiou sua cultura pelo país. De fato, os nordestinos se tornaram parte fundamental de São Paulo, seja por representarem 12,6% da população do estado (PNAD 2015) ou porque muitos paulistanos são filhos ou netos de nordestinos (por exemplo, a mãe do fundador da Emerge é natural de Itamaraju; o avô de Jequié, ambas cidades do sul da Bahia).
O Nordeste está encravado em São Paulo. Se não fossem os nordestinos, é bem provável que a maioria dos paulistanos nem tivesse casa, ainda mais aqueles que moram em condomínios. Há décadas, a força de trabalho da construção civil na cidade é composta, majoritariamente, por baianos, cearenses e pernambucanos – os três principais grupos de migrantes, de acordo com o Ipea.
São Paulo tem a fama de ser o lugar mais nordestino do Brasil fora do Nordeste. Cerca de 5 milhões de pessoas chegaram ao Estado, segundo o IBGE, principalmente a partir de 1930. Naquela época, o processo de industrialização da metrópole impulsionou uma onda migratória devido muitos trabalhadores avistarem aqui a oportunidade de uma vida melhor. O que começou no passado ainda não se findou. Até hoje, são muitos os que escolhem sair de sua terra natal para cocriar a cidade.
E São Paulo é repleta de símbolos. O Largo 13 de Maio, em Santo Amaro, é um centro de comércio de cultura nordestina. A região também abriga a biblioteca pública Belmonte, especializada em cultura popular. No bairro do Limão, há o Centro de Tradições Nordestinas, espaço de valorização e preservação cultural. Em Pinheiros, o forró corre solto na casa de shows Canto da Ema. E a lista segue forte, vide o tanto de Casa do Norte espalhada por toda a cidade.
Ainda que haja manifestações preconceituosas e discursos de superioridade sudestina, a potência dos nordestinos é inquestionável e segue fazendo São Paulo mais plural e criativa. Como disse alguém muito mais poético do que essa repórter:
FOTOGRAFIAS: Kalinca Maki e Rafael Felix.
BELEZA E MAQUIAGEM: Kali Beauty.
Emerge Potências da Moda
Criação da Emerge Estúdio, unidade de pesquisa, conteúdo e inteligência de negócios da Emerge, Emerge Potências da Moda é uma profunda investigação de negócios emergentes de moda da cidade de São Paulo, com foco em lideranças de periferias, LGBTQIA+, negros, mulheres, indígenas urbanos e pessoas com deficiência. Além da série de reportagens, integram o projeto pesquisas quantitativa e qualitativa, debates interativos (lives) e relatório micro setorial de economia criativa.
Emerge Potências da Moda foi contemplado na chamada aberta RE-FARM CRIA, uma iniciativa do Instituto Precisa Ser + Farm. Por meio de patrocínio, o programa apoia o desenvolvimento de projetos e ações de coletivos, organizações sem fins lucrativos e pessoas físicas em capitais do Brasil e territórios periféricos do Rio de Janeiro.
O projeto conta com apoio da indústria de aviamentos Ludan Franjas, da produtora de vídeos e fotografias In.Par e du maquiadore Kali Beauty.