Cordas, látex, chicotes, coleiras, couro, algemas. Associar esses objetos com o sexo e o prazer pode parecer estranho para muitas pessoas. A última edição publicada do Manual de Diagnóstico Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5º), em 2013, por exemplo, ainda considerava estas práticas como “transtornos parafílicos”. Além disso, uma série de pesquisadores dos anos 90 ligava o sadomasoquismo ao canibalismo, vampirismo, assassinato em massa, necrofilia e outros comportamentos perturbadores. E isso criou uma ideia que persiste até hoje: praticantes do BDSM são pessoas “perversas e loucas”.
Para quem não está familiarizado, BDSM é um conjunto de práticas consensuais que envolvem bondage, disciplina, dominação, submissão, sadomasoquismo e outros padrões similares de comportamento sexual humano. Em um mundo dominado pelo machismo, é lógico pensar que as mulheres envolvidas no BDSM são ainda mais estigmatizadas. Para a dominatrix profissional Dommenique Luxor, o gênero feminino já é visto socialmente como um “corpo desviante e que não tem voz”. Ou seja, ser mulher e dominadora é certamente um desafio. Porém, para algumas, se profissionalizar nestas práticas foi a forma de se emancipar financeiramente, sair de um relacionamento abusivo ou seguir um trabalho fora da lógica capitalista.
Não há homem que não obedeça Dommenique quando ela coloca o salto alto e segura um chicote. E quando não a respeita, sofre punições que incluem choques, humilhações verbais e espancamento (tudo com consentimento e respeito à palavra de segurança, claro). Profissional do meio há mais de 20 anos, Dommenique é autora do livro “Eu, Dommenique” (Leya, 192 páginas, R$ 19,90), que conta a sua rotina de trabalho. Ela também ministra cursos e workshops.
Fora das quatro paredes, Dommenique é Daniela, mais uma mulher que sofre com o machismo da sociedade. Embora na profissão ela desempenhe uma personagem, não dá para dissociar as duas personalidades. Dommenique conta que, enquanto foi se tornando cada vez mais dominante profissionalmente, sua vida pessoal também mudou. Ela explica:
Já para Sansa Rope, a arma contra a dominação masculina são as cordas. Desde que começou a se interessar por shibari (técnica de amarração de origem japonesa), ela precisou lidar com comentários e gracinhas vindas de homens. “Eles achavam bonitinho e engraçado uma mulher querer aprender shibari”, diz. “Mas hoje fico orgulhosa que amarro melhor que muitos deles.”
Cassandra Suprema, que além de dominadora é psicóloga, psicanalista e ativista pela emancipação das mulheres em risco de violência doméstica, acredita que um dos pilares centrais que liga o BDSM à libertação feminina é a consensualidade. Na prática, nada ocorre se as duas partes não estiverem de acordo. E se não existir concordância, não há erotismo – é violência.
Já o segundo ponto é que o BDSM permite que cada sujeito assuma uma identidade de acordo com suas fantasias e seu gozo. Por isso, ela deixa bem claro: para se empoderar, a mulher não precisa, necessariamente, assumir um papel de dominância. Se ela goza sendo submissa, pode assumir essa posição.
Eu sou adepta da supremacia feminina, porque ela guarda os segredos do gozo feminino. A mulher é superior ao homem porque o gozo dela é infinitamente maior. Acredito que pode haver empoderamento via o gozo feminino. Então, não faço diferença entre dominadora e submissa.
Cassandra Suprema, psicóloga e dominadora
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REFLEXO DA SOCIEDADE
Um dos fundamentos do BDSM é que há sempre dois papéis: o do “submisso” e o do “dominante/dominador(a)”, que assume o controle psicológico e/ou físico sobre o parceiro. De acordo com um estudo de 2018, feito pelos pesquisadores Andreas Wismeijer e Marcel van Assen, da Tilburg University, 76% das mulheres no BDSM são submissas, 16% switchers (desempenham os dois papéis) e somente 8% dominantes. Já entre os homens, 48% são dominantes, 34% submissos e 18% switchers.
Esses números não são surpreendentes se compararmos a outros sistemas sociais, onde grande parte das posições de poder são ocupadas por pessoas do gênero masculino. E, assim como nas demais esferas, o machismo também afeta o mundo fetichista de outras formas, como o incentivo a competição feminina. De acordo com Sansa, no entanto, há um movimento recente de aparecimento de mais mulheres dominantes no BDSM e, mais do que isso, querendo passar o seu conhecimento adiante, por meio de cursos e workshops.
“São mulheres incentivando outras mulheres a dominar e a desenvolver a sua sexualidade”, afirma Sansa.
Para Dommenique, essa mudança vem associada a outros movimentos de militância. Ela traça um paralelo entre a Segunda Onda Feminista, que começou em 1960 nos Estados Unidos, e o aumento de citações na literatura e na mídia sobre mulheres dentro do BDSM. Segundo a dominatrix e historiadora, esta mesma correlação pode ser feita atualmente, quando falar sobre o feminismo está em alta, bem como se autoafirmar como praticante do BDSM. “Isso é reflexo direto de uma militância: as pessoas não precisam, necessariamente, falar de BDSM escondidas”, diz ela. “Isso muda para o sentido de não sexismo e machismo e inclui na prática corpos desviantes.”
Já para Cassandra, o mundo fetichista é tão sexista e machista quanto a própria sociedade. Ela diz que o fetiche é uma subcultura – e não uma contracultura. Dessa forma, carrega a marca do conformismo. O que acontece na sociedade reflete no mundo do BDSM. E no universo das cordas e algemas, mudar essa realidade também depende de uma união entre as mulheres.
Acredito que para combater o sexismo e o machismo no BDSM é necessário muita sororidade e organização de todas, tanto as domes, quanto as subs. Além disso, não podemos esquecer do processo de educação dos homens, sejam dominantes, sejam submissos.
Cassandra Suprema, psicóloga e dominadora
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BDSM AINDA É UM TABU?
É bem provável que todas as mulheres que nasceram no último século escutaram pelo menos uma vez na vida que é necessário “sempre agradar ao homem”, “ser gentil” e “obedecer ao que ele pedir”. Mulheres são criadas para serem servis, carinhosas e submissas. Assim, é fácil entender o motivo que, para muitas, assumir posições de dominância é uma tarefa difícil.
Para Dommenique, por exemplo, quebrar esse paradigma não foi simples. O BDSM colocou o corpo dela em um lugar que ela não estava preparada culturalmente – ela não foi ensinada a ser dominadora. “Até quando uma mulher tem um lugar de voz, corre o risco de ela não saber atuar nesse lugar”, diz. “Não fomos treinadas para isso, porque, historicamente, não ocupamos esses lugares”.
Cassandra, afirma que esse controle moral, sexual e civilizado, que tentam impor ao corpo das mulheres, é uma das maiores barreiras para que elas tenham relações saudáveis com o seu próprio corpo. O empoderamento que vem com a profissão de dominatrix, por exemplo, proporciona ocupar este lugar “estranho” ao corpo feminino e, assim, começar a desconstruir esses estigmas. Como mulher, não há como fugir do machismo, que está impregnado na sociedade.
Em seus atendimentos, ela percebe uma grande dificuldade que as mulheres têm com a sexualidade. Para ela, o trabalho com a erótica dos corpos via BDSM pode reverter essa situação, principalmente em casos de violência doméstica.
Junto com o sexismo que ronda o mundo fetichista, Sansa e Dommenique apontam para outro desafio na profissão: a normatividade social e a desinformação, que faz com que elas precisem lidar diariamente com o preconceito por serem pessoas ditas “perversas”. E isso, muitas vezes, afasta outras mulheres que querem se aventurar no BDSM. Um problema comum é quando mulheres querem participar das práticas, mas só se deparam com informações vindas de homens. Aí há o risco de acabar em relações abusivas disfarçadas de BDSM.
Em termos de comunidade, Dommenique diz que é preciso que o movimento tenha uma voz própria, comece a mostrar o rosto e tenha formatos próprios de comunicar as práticas e convencer as pessoas que são corpos que merecem ser respeitados.
E pesquisas indicam que, por mais que os chicotes e coleiras assustem algumas pessoas, o interesse pelo fetiche é grande. De acordo com um estudo feito por Christian Joyal em 2015, 64,6% das mulheres e 53,3% dos homens responderam que já tiveram fantasias com serem dominados e 46,7% das mulheres e 59,6% dos homens disseram que fantasiaram dominar outras pessoas sexualmente. Ao que tudo indica, o que falta é abrir a cabeça.
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