Fundada em 1971, a Peixaria Mitsugi tem sido por décadas o único estabelecimento de venda de pescados frescos do bairro da Liberdade. Seu fundador, o imigrante japonês Sozaburo Mitsugi era uma lenda viva devido à sua excelência no ramo. Ele, inclusive, foi escolhido para preparar pratos para membros da família imperial do Japão, que visitou o Brasil no início dos anos 2000.
Hoje, mais de 40 anos depois, quem visitar a peixaria da Rua Galvão Bueno ainda encontrará quadros com inscrições japonesas e a foto de seu criador pendurados nas paredes de azulejos azuis.
Além do sortimento de pescados, que inclui salmão, atum e sardinha, o visitante poderá usufruir de um pequeno restaurante, que tem como carro-chefe os tradicionais sashimis. Há também uma carta de cervejas e drinks clássicos, como Negroni e Gin Tônica.
Mas é após o expediente que a peixaria revela outra vocação: há seis meses, o lugar tem sido palco de diferentes festas – a maioria de vertentes do techno e house.
Seguindo a premissa de que “o fervo também é luta”, a Mitsugi representou quando realizou o evento “Mulheres Negras em Busca da Dignidade de Todas”. Houve shows de Linn da Quebrada, MC Soffia, Samba Negras em Marcha e Coletivo de Oya.
Neste dia, toda a renda da casa foi revertida para a ONG Agentes da Cidadania, que atende mulheres em situação de prostituição e de risco social na região da Estação da Luz.
A casa também recebeu a festa de encerramento da última edição do evento de moda Casa dos Criadores.
A revitalização da Mitsugi tem sido encabeçada pelo psicanalista Luis Fernando Santos, 32 anos, que comprou a peixaria há cerca de um ano. A paixão de Luis pelo local nasceu há uma década, quando ele, até então um jovem publicitário, passou a morar na Liberdade. Desde então, nunca mais comprou peixe em outro lugar.
PEIXES, SESSÕES DE TERAPIA E UMA NOVA AMIZADE
Entre uma visita e outra, Luis acabou se aproximando do sushiman-chefe da Mitsugi, Antônio Kleber da Silva, de 46 anos. Das conversas informais, nasceu uma amizade.
A história de Antônio é um caso à parte. De origem maranhense, criado à farinha, carne de bode e rapadura, ele trabalhou por vinte anos ao lado do senhor Mitsugi, com quem aprendeu as técnicas de seleção e corte de pescados.
No dia das refeições exclusivas para a comitiva imperial do Japão, por exemplo, foi Antônio que fez metade dos pratos – e ninguém percebeu a diferença.
Com o passar do tempo, o mestre japonês transferiu as responsabilidades para o pupilo. Após a morte de Mitsugi, em 2012, a esposa do fundador passou a peixaria para Antônio. Sua conta sua relação com o peixeiro:
“Eu sempre admirei a história dele devido à sua inteligência emocional, a forma como foi farejando a vida e, por pequenos movimentos, conseguiu chegar onde chegou.”
Na época, Luis passava por um momento delicado. Ainda trabalhando em uma agência de publicidade, ele perdeu totalmente o interesse na carreira – mesmo ganhando um bom salário e tendo um cargo de gestor. Foi um desapaixonamento.
Para tentar se reencontrar, ele focou em sessões de psicanálise. Também passou a experimentar diferentes hobbies. Tinha fé que em um dos passatempos poderia descobrir novamente uma vocação. Ele focou em uma das suas paixões: a culinária. Fez cursos de panificação, bartender, degustação de vinho e até de açougueiro.
O ápice da busca foi quando fechou um curso de gastronomia na França. Poucos dias antes da viagem, desistiu. Teve outra ideia: comprar um sítio no interior paulista e ser tornar agricultor. Chegou a conhecer algumas propriedades rurais, mas a vida no campo também não parecia o suficiente. O apreço pela metrópole era mais forte.
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COMPREI UMA PEIXARIA. E AGORA?
Enquanto Luis batia a cabeça sobre o que faria da vida e passava horas em sessões de psicanálise, Antônio também o admirava pelo fato de conseguir “traduzir” seus pensamentos.
Nesta época, após cinco anos de terapia, Luis percebeu que poderia de ser psicanalista. Em 2015, após a demissão do cargo de diretor de planejamento na Agência Africa, o jovem focou na carreira de terapeuta. Hoje, ele atende em seu próprio consultório e está concluindo o curso de formação em psicanálise no Instituto Sedes Sapientiae.
Já a ideia de comprar a peixaria aconteceu há cerca de um ano, quando Luis fez um churrasco em sua casa e chamou o amigo Antônio. Lá, o sushiman comentou que iria vender a Mitsugi, pois estava com dificuldades de gerir o estabelecimento.
Antônio afirmava que gostava mesmo era de cortar peixe. Não tinha paciência para lidar com notas fiscais e outras atividades burocráticas de um comércio.
Com a venda, era bem provável que a peixaria deixaria de existir. Uma vez disponíveis, os pontos vagos na Liberdade têm sido tomados por lojinhas de produtos chineses.
Luis, então, se ofereceu para assumir a peixaria, desde que Antônio continuasse trabalhando no estabelecimento. O acordo foi fechado quase na mesma hora.
O primeiro desafio da dupla foi reformar o local. Houve ajustes no piso e azulejos, manutenção dos equipamentos e retirada de lixo e itens acumulados. Também foi criado um pequeno escritório, na parte superior do comércio.
Com a abertura do restaurante, em maio deste ano, Luis fez um post em sua página pessoal no Facebook. Logo, seus amigos passaram a frequentar o local. A movimentação começou a crescer com os novos visitantes postando fotos e vídeos da Mitsugi no Instagram.
Donos de restaurantes e casas de shows, jornalistas, gente da moda e pessoas da noite paulistana passaram a frequentar a Peixaria.
Em poucos meses de funcionamento, as receitas do estabelecimento aumentaram cinco vezes sob a nova gestão e modelo. Com o burburinho, houve matérias sobre a Mitsugi no site da Vogue e na revista Veja São Paulo.
No entanto, tamanha exposição na mídia, fez com que, de um dia para outro, 200 pessoas aparecessem para o jantar. Na época, havia cerca de seis mesas no restaurante e duas funcionárias para fazer a entrega dos pratos. Foi acesso um sinal amarelo.
“Foi quando eu me dei conta que eu poderia estar destruindo algo que tanto admirava.”
O restaurante, então, passou a servir jantar apenas com hora marcada – uma maneira de controlar o fluxo de pessoas e garantir acesso a todos. Durante o dia, Luis manteve os mesmos preços e serviços da gestão antiga. Assim, os clientes tradicionais, grande parte senhoras e senhores japoneses, poderiam continuar frequentando o local.
Outra característica do serviço diurno é o pouco desperdício. A clientela consome todo o peixe. Levam para casa até mesmo a cabeça e as espinhas. A cada final de semana, são vendidos 300 quilos de peixe. No entanto, são gerados apenas 10 quilos de resíduos.
PERIGOS DA REVITALIZAÇÃO
A história de Luis e sua relação com a Peixaria Mitsugi poderia ter sido retratada no livro Masters of Craft: Old Jobs in the New Urban Economy (Mestres Artesãos: Velhos Ofícios da Nova Economia Urbana). A obra, lançada em maio deste ano, aborda a reinvenção de trabalhos manuais nas grandes cidades.
De autoria do professor de sociologia Richard Ocejo, da Universidade de Nova York, o livro aponta que jovens com alto nível de educação têm escolhido ofícios como barbeiro, açougueiro e bartender, em vez de carreiras corporativas.
Embora não seja a pessoa à frente da cozinha, a visão de Luis é similar aos casos descritos no livro. Esses jovens profissionais querem preservar o pequeno comércio e sua autenticidade. Eles também buscam educar novos públicos sobre a qualidade, origem e história de seus produtos e serviços.
A ideia é boa, mas, ao mesmo tempo, há um perigo. A compra de uma peixaria num bairro tradicional e próximo ao centro, que tem abrigado lançamentos imobiliários e possui áreas degradadas, remete à gentrificação.
Criado pela socióloga britânica Ruth Glass, o conceito de gentrificação (gentrification) surgiu nos anos 60, em Londres. Trata-se de um processo em que áreas urbanas ocupadas por classes trabalhadoras e de baixa renda passam a ser “invadidas” por moradores de classes mais altas. Em paralelo, o lugar recebe mais investimentos em infraestrutura e serviços, além de ter redução de criminalidade.
O lado negativo, e principal característica, é que a mudança física e social acarreta no aumento do custo de vida da região e leva a expulsão dos antigos moradores. Nos últimos anos, o tema tem ganhado relevância no Brasil devido à especulação imobiliária em grandes centros urbanos.
Questionado sobre o assunto, Luis afirma que o conceito não se aplica ao caso da Peixaria Mitsugi.
Para ele, a Liberdade é um bairro com moradores, instituições e estabelecimentos sólidos, que não seriam facilmente demolidos para construção de novos empreendimentos. O lado decadente, com ruazinhas que escondem pequenos comércios, ainda é visto como atração.
“Aqui é diferente do Baixo Augusta, onde derrubam dois ou três bares velhos e constroem prédios com dezenas de andares.”
Ao mesmo tempo, ele garante que tornou a peixaria um lugar melhor para os clientes e funcionários. Hoje, a remuneração mensal de Antônio é cinco vezes maior do que antes da revitalização.
Com eventos gratuitos e de estilo musical diversificado, o local também tem recebido visitantes de diferentes classes sociais. Em noites de jantar, é possível encontrar casais de adolescentes, LGBTs, jovens e famílias (orientais ou não).
Por último, Luis revela que não se identifica como um empreendedor e nem enxerga a peixaria como um negócio, mas sim um desdobramento de sua vida. E ele garante: “meu velório será aqui.”
IMAGENS: Reprodução da página Peixaria Mitsugi no Facebook.