No início do mês de abril, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) autorizou, pela primeira vez na história brasileira, que uma pessoa seja identificada como gênero neutro em seu registro civil.
No centro da discussão estava uma pessoa que havia realizado transição de gênero, incluindo tratamento hormonal e cirurgia de redesignação sexual. Porém, após os procedimentos, a pessoa percebeu que não se identificava nem como homem e nem como mulher. Assim, solicitou à Justiça o direito de ser reconhecida como gênero neutro.
Para o colegiado do STJ, apesar de não existir legislação específica sobre o tema, não há razão jurídica para a distinção entre pessoas trans não binárias e transgêneras binárias, que já possuem o direito à alteração do registro civil, de masculino para feminino ou vice-versa. Em todos os casos, o que deve prevalecer no registro é a identidade auto percebida pelo indivíduo.
“Todos que têm gênero não binário e querem decidir sobre sua identidade de gênero devem receber respeito e dignidade, para que não sejam estigmatizados e fiquem à margem da lei.”
Ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça.
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O CONCEITO DE GÊNERO NEUTRO
Como afirmou a ministra Nancy, o gênero neutro está associado ao não-binarismo de gênero, descrevendo pessoas que não se identificam nem com o masculino nem com o feminino.
De acordo com a filósofa norte-americana Judith Butler, cuja obra é central para os estudos de gênero e para a teoria queer, o conceito de identidade de gênero passou a ser amplamente questionado a partir das últimas décadas do século 20.
No livro Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade (1991), Butler diz “não há uma identidade de gênero por trás das expressões de gênero; essa identidade é constituída performaticamente pelas próprias expressões que são tomadas como seus resultados”.
Em paralelo, o tema ganhou visibilidade entre comunidades LGBTQIA+ norte-americanas. A proposta era justamente desafiar a concepção de que a identidade de gênero constitui uma categoria fixa e essencialista. Nesse contexto, também emergiu um movimento crítico à rígida divisão dos papéis sociais atribuídos a homens e mulheres na cultura ocidental.
Além de questionar a dualidade de gênero, pessoas que se identificam com o gênero neutro, ou mesmo aquelas que se reconhecem como agêneras, sustentam que o gênero não constitui uma parte necessária ou definidora de sua existência.
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DIFERENTES TERMOS E USOS
Importante destacar que, embora muitas pessoas de gênero neutro ou agêneras também se identifiquem como não-binárias, essas as identidades não são sinônimos. Por exemplo, enquanto pessoas não-binárias podem se identificar com nenhum gênero ou múltiplos, mas de forma fluida, pessoas agêneras se identificam especificamente com a ausência de qualquer gênero.
Outro erro que não se deve cometer é associar gênero neutro ao conceito de “unisex“. Popularizado nos anos 1960 no mercado de moda, unisex se referia, principalmente, a objetos e estabelecimentos que serviam ou atendiam tanto homens quanto mulheres, como roupas e cortes de cabelo.
Falando em moda, há também as marcas “agênero”, que desenvolvem roupas que não seguem normas convencionais baseadas no que é tido como feminino e masculino. Geralmente, são peças feitas para serem confortáveis, independentemente do biotipo e volume corporal que quem veste.
Outro uso do termo “agênero” é para designar espaços públicos que não distinguem o gênero dos usuários. Os banheiros agêneros, por exemplo, são destinados a todas as pessoas e buscam proporcionar mais segurança e inclusão para pessoas trans e não-binárias, principalmente. Importante salientar que os banheiros têm sido objeto de disputa política e de cerceamento de direitos, sendo palco de inúmeros casos de violência contra pessoas não cisgêneras.
FOTOGRAFIA DE ABERTURA: Free Pik.