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Heranças africanas e indígenas na brasilidade de Julia Vidal

15/05/2019

Pesquisadora e designer de moda mergulha em símbolos para despertar a consciência sobre a identidade e a formação do povo brasileiro

Você já pensou sobre qual foi a primeira vestimenta tipicamente brasileira da nossa história?

Aqui vão algumas dicas: as saias tinham influência francesa; os bordados eram de origem inglesa; as mangas bufantes também faziam referência à nobreza europeia e o uso de muitos colares veio do norte de Portugal.

Já os panos nas costas e suas diversas amarrações eram típicos da Nigéria e, o turbante, do povo Malê, da região que hoje abrange o Sudão, país do nordeste da África. Por sua vez, a predominância da cor branca tinha relação com o Candomblé.

Sim, estamos falando da roupa das mulheres quituteiras baianas, que surgiram ainda no período colonial e, a partir do século XIX, elas se transformaram em donas de comércios e foram as primeiras chefas de família do Brasil.

Também entra na indumentária as pencas de balangandãs, que nascem dos molhos de chaves que as sinhás usavam para abrir os baús da casa, que representavam a riqueza da família.

JULIA VIDAL: MODA REVELA QUESTÕES RELACIONADAS A ESTÉTICA E PADRÕES DE BELEZA

Junto com essas chaves, começa a entrar a referência dos santos padroeiros da família e, posteriormente, outras menções africanas, como frutas e figas, que representam a fertilidade e prosperidade para o comércio.  

Quem nos honra com essa aula de moda é Julia Vidal, pesquisadora, designer e pós-graduada em História da África no Brasil.

Com seu delicioso sotaque carioca e uma simpatia sem igual, ela explica mais:

A vestimenta das baianas tem como característica o hibridismo cultural, um fenômeno histórico-social que existe desde os primeiros deslocamentos humanos, que resultaram em contatos permanentes entre grupos distintos. Se você for à África ou para a Europa, não vai encontrar os trajes da forma que há no Brasil, só partes das composições. Essa indumentária nasceu no nosso país.

Julia não se limita a apenas uma área dentro do mundo da moda. Em sua trajetória de quase duas décadas, ela já realizou desfiles em Bogotá e Londres; produz noivas com temática brasileira; atua como figurinista, tendo vestido Taís Araújo na série Mister Brau e o compositor João Donato no Rock in Rio.

A pesquisadora também ministra aulas no Instituto Europeu de Design, nas unidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. Além disso, dá cursos rápidos e oficinas em espaços como Penitenciária de Benfica e Museu de Arte do Rio de Janeiro. Em todos os seus trabalhos, ela traz a brasilidade com heranças africanas e indígenas.

Julia narra histórias que não foram contadas ao utilizar o contato com o corpo. Foi assim que ela descobriu que, a partir do momento em que uma pessoa veste sua roupa, seu trabalho pode despertar questões relacionadas a identidades e padrões de estética.

Ela entende a moda como uma possibilidade de transformação social. Visto que 95% do que é produzido no mercado de moda nacional é consumido pelo próprio brasileiro, sua proposta é trazer o olhar para dentro da nossa cultura, indo na contramão do padrão eurocêntrico com o qual estamos acostumados. 

“A Moda é uma plataforma, uma ferramenta de despertar a consciência relativa à nossa identidade e ao nosso processo de formação do povo brasileiro”

Saindo da perspectiva de que a escrita é a única forma de conhecimento, Julia criou tipografias pensando em uma estamparia onde as pessoas tivessem contato com as histórias de seus antepassados. O estudo abordou as etnias africanas trazidas ao Brasil – e suas simbologias e iconografias.

“O povo de Gana tem um tecido chamado Adinkra, que reúne diferentes ideogramas, um deles, o Sankofa, traz uma ave com a cabeça virada em direção ao rabo e na ponta de seu bico há uma semente. A grande mensagem é: não está errado olhar para trás e buscar o que foi esquecido”

A partir desse estudo, ela percebeu que muitos desses símbolos faziam parte do nosso cotidiano, como a vestimenta das baianas, mas tínhamos pouca consciência disso.

O projeto fez parte do seu trabalho de conclusão de curso em design na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 2004. O projeto levou o nome de “O africano que existe em nós, brasileiros” (calma, falaremos novamente dessa parte mais adiante).

ICONOGRAFIAS DE ORIGEM AFRICANA E INDÍGENA SÃO USADAS PARA CRIAR ESTAMPAS DE ROUPAS

Até então, Julia usava somente o design como forma de comunicação, mas, devido à demanda de encomendas de suas estampas, ela criou sua própria marca de roupas em 2005.

Inicialmente chamada de Balaco e voltada para ambos os gêneros, a marca passou por reformulação. Hoje, se chama Julia Vidal e atende apenas mulheres. Dessa forma, Julia acaba unindo a moda com outros projetos que participa, voltados ao empoderamento feminino, como a Rede Girassol e um contato mais íntimo com a mulher.

Um desses projetos reúne mulheres negras e indígenas em oficinas culturais, onde parte dos trabalhos realizados são utilizados dentro de sua grife, trazendo a inserção dessas mulheres na cadeia da moda.

Suas peças podem ser adquiridas nas Lojas Novo Desenho, no Museu MAM, bairro da Glória, e no Museu MAR, no Centro do RJ. Também é possível comprar online através do site e redes sociais de Julia.

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ENTRE PESQUISA E COMÉRCIO

As peças são desenvolvidas com processos de tingimento naturais, estamparia que respeita códigos de ética e que leva saberes sociais.

Dessa forma, é uma moda menos agressiva ao meio ambiente, fazendo contraponto ao conceito de fast fashion (aproveitando o gancho, sugiro que assistam ao “The True Cost”, documentário disponível na Netflix, que aborda e questiona os aspectos sociais e ambientais da indústria da moda).

Entre os fornecedores da marca, estão cooperativas como a Retalhos e Bordados e a Bordado Carioca, um ateliê escola formado por mulheres, localizado no Morro da Conceição, no Centro do Rio de Janeiro.

No cotidiano, o trabalho de Julia é dividido em duas etapas: a primeira é para produção e criação; a segunda é para pesquisas e projetos – ela costuma tirar dois dias da semana para a primeira etapa e, nos outros três, se dedica às pesquisas.

IEMANJÁS: PRODUÇÃO DE MODA FEITA POR JULIA

Por causa de sua rotina, aproveita as vantagens da tecnologia para se comunicar por meio de vídeos e mensagens com suas equipes e com povos indígenas, com quem realiza pesquisas.

“Eles também são muito conectados”, afirma Julia.

Entre os grupos parceiros estão o Observatório Cultural das Aldeias (OCA) e, em especial, ela mantém trabalho com os índios Guaranis em eventos culturais e Pataxós na produção de linhas de uniformes sustentáveis.

Ainda, Julia ministra um curso online, onde consegue descentralizar a produção de conhecimento fora do eixo Rio-São Paulo.

As aulas abordam a compreensão da própria identidade e do trabalho autoral, além de estamparias e processo de criação de africanos e indígenas e também produção prática.

O curso, batizado de Criação de Estamparia Étnica, pode ser acessado neste link.

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O DESPERTAR DA CADEIA

Em 2015, Julia lançou o livro “O africano que existe em nós, brasileiros’’,onde traz a cultura africana representada em histórias, costumes, comportamentos e nas cores e desenhos estampados no vestuário do brasileiro. O título é uma atualização de seu TCC de 2004.

O AFRICANO QUE EXISTE EM NÓS, BRASILEIROS: PRIMEIRO LIVRO DE MODA BRASILEIRO COM TEMÁTICA AFRO-INDÍGENA

Na obra, ela mostra como o processo de escravização – e não escravidão! – desses negros africanos trazidos ao Brasil interferiu culturalmente no nosso país não só em música, culinária, vocabulário e arte, mas também na Moda.

Julia conta que lançar um livro não era uma prioridade, mas a ideia surgiu, principalmente, devido à quantidade de e-mails que recebia de professores pedindo ajuda para utilizar a Lei 10.639/03 (alterada pela Lei 11.645/08).

A lei torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas, públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio.

Para ajudar os profissionais, ela disponibilizou materiais para downloads em seu site. Em seis meses, houve mais de 2.500 cópias baixadas.

Para fomentar ainda mais o projeto do livro, ela foi contemplada com um edital da Secretaria de Políticas da Promoção da Igualdade Racial, do extinto Ministério da Cultura.

Editado pela Biblioteca Nacional e Babilônia Cultura Editorial, a publicação foi a primeira do segmento de moda e design a abordar a cultura afro-brasileira. Com tiragem inicial de 1500 exemplares, a obra se esgotou em três meses.

Devido ao sucesso entre professores, artistas plásticos e fashionistas, o livro gerou um convite para a criação de outra publicação. Nascia o Quintal Étnico, um livro infantil de colorir focado na cultura afro-brasileira.

QUINTAL ÉTNICO: LIVRO DE COLORIR PARA CRIANÇAS

Para a nossa alegria, Julia está desenvolvendo mais dois novos livros.

“Antes, pensava em despertar o individual”, diz ela. “Hoje, penso no despertar em cadeia”

Atualmente, Julia tem atuado como consultora para marcas de moda que trabalham com identidade brasileira, como Farm e Muda.

A ideia é incentivar uma moda mais consciente, social e economicamente, e retrabalhar as formas de entender e produzir com base em referências de povos originários.

E, assim como seu orixá Iansã, ela traz bons ventos de inovação para uma moda étnica e ética.

IMAGENS: Divulgação

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