Pesquisar
Close this search box.
Pesquisar
Close this search box.

Jogue como uma mulher com as LeSisters

13/07/2018

Badalado time de futsal feminino amador mostra como a modalidade esportiva símbolo nacional pode ser um meio de empoderamento e sororidade

Entre 1941 e 1980, matar a bola no peito, driblar o adversário e marcar um gol era, por lei, proibido às mulheres. Um decreto federal, que vigorou no período, determinava que elas não podiam jogar futebol (e nem praticar lutas de qualquer natureza, polo aquático, polo, rugby, halterofilismo e beisebol).

A justificativa da época, baseada no machismo e moralismo, era que tais práticas esportivas poderiam causar o deslocamento do útero, comprometendo a capacidade das mulheres de engravidar – o que demonstra bem a intenção de as reduzirem a meras reprodutoras.

Mas como toda lei injusta deve ser descumprida, as mulheres nunca deixaram de jogar. Neste período, partidas acontecerem sob lonas circenses e foi motivo de batidas policiais.

JOGADORAS DO LESISTERS: TODO DOMINGO DE MANHÃ ELAS SE REÚNEM NUMA QUADRA EXCLUSIVA

Embora ainda enfrente grandes dificuldades, a participação e visibilidade das mulheres no futebol tem crescido nas últimas décadas.

E uma das responsáveis por essas rupturas emancipatórias é a advogada Marcela Bardini, fundadora e goleira do time de futsal feminino amador LeSisters F.C.

Fundado em 2011, o time organiza encontros para mulheres jogarem futsal todas as manhãs de domingo, na capital paulista. Se no início havia dificuldade para formar dois times, hoje é tanta mulher que há dias com quase 100 jogadoras.

Para participar basta comparecer na quadra reservada ao LeSisters, localizada no bairro da Liberdade (Rua Tomás de Lima, nº 72, 3º andar).

A pelada começa às 10h30 e vai até às 13h30. As jogadoras de alto desempenho também se reúnem às sextas-feiras. É quando acontece treinos sob o comando da técnica Roberta Ramos.

Quem participa dos jogos contribui com uma taxa de R$ 10, usada para custear o aluguel da quadra. Para aquelas que participam do time competitivo, há o custo do uniforme.

Contudo, o pagamento das taxas não é imperativo para participar. Marcela, torcedora do São Paulo e filha de ex-jogador da Portuguesa, comenta o panorama:

“Nunca quis ser atleta. Mas, antes do LeSisters, tinha dificuldade de encontrar espaços para jogar futebol, o esporte que amo. Hoje, é prazeroso fomentar a prática junto a outras mulheres. E dentro do time já há jogadoras que treinam com foco em carreira profissional”

Desde 2014, Marcela organiza o Campeonato LeSisters de Futsal Feminino. Os torneios contam com times de outras cidades e reunem mais de 20 clubes. A competição também tem viés de assistência social. As próprias jogadoras recolhem alimentos, material de limpeza e de higiene, que são doados para entidades e comunidades carentes.

Na última edição do campeonato, que aconteceu de abril a junho deste ano, com participação de 250 boleiras e suas famílias, as doações foram destinadas para um asilo em São Bernardo do Campo. No passado, a ONG Teto Brasil, pessoas em situação de rua e duas mil crianças de uma comunidade carente da Baixada Santista também foram contempladas.

MARCELA, DO LESISTERS: APÓS NÃO ENCONTRAR ESPAÇO NO MEIO MASCULINO, FUNDOU SEU PRÓPRIO TIME

O engajamento do LeSisters já rendeu parcerias com marcas. Em 2017, o time participou da campanha de lançamento da Intimus Sport, linha de absorventes da Kimberly-Clark voltada para práticas esportivas.

Numa parceria conjunta com a espnW, plataforma da rede de TV ESPN responsável por reunir conteúdo sobre o universo esportivo feminino, elas foram convidadas para jogar a primeira partida de futsal feminino amador transmitida ao vivo.

O jogo foi contra o Canela de Mina, time da Vila Olímpia, na zona sul paulistana. A transmissão alcançou mais de 120 mil pessoas e gerou 13.400 mil reações nas redes sociais da Intimus.

“A repercussão foi tamanha que meninas do Brasil inteiro, do Chile e do Panamá entraram em contato comigo para pedir uma oportunidade no time”, afirma Marcela. “Foi como se o LeSisters fosse clube profissional.”

NÃO É SÓ FUTEBOL

Não é exagero dizer que dentre tantas modalidades esportivas, o futebol ainda é uma das que apresentam maior resistência a presença feminina. É raro ver mulheres em posições de tomada de decisão em clubes e federações e na mídia esportiva.

Assim como aconteceu quando as mulheres foram proibidas de jogar, o grande problema não diz respeito ao futebol em si. Mas no conceito amplo de subversão de papéis que acontece quando elas calçam as chuteiras e ocupam espaços que são, há mais de um século, reservados aos homens.

Marcela afirma que sua trajetória futebolística de mais de uma década foi marcada por manifestações misóginas. “Quantas e quantas vezes, eu não escutei ‘você é pequena, feminina e delicada para jogar futebol’”, diz ela.

E dentro e fora de campo, além da preocupação com o rendimento técnico, elas têm que lutar contra o desinteresse, o preconceito e a falta de estrutura.

A realidade da maioria dos clubes de futebol feminino é precária. Na várzea, o quadro tende a ser pior ainda. Essas equipes, de modo geral, se mantêm com a organização de competições independentes, quando são arrecadados recursos. O caso do LeSisters é exceção, pois Marcela custeia boa parte do projeto com dinheiro do próprio bolso.

Entre as dificuldades, nos times femininos o espírito de equipe ultrapassa os gramados e quadras e se converte em um ambiente de acolhimento e apoio mútuo. No LeSisters, isso é perceptível até no nome (irmãs, em português). Marcela observa:

“O time, os eventos e o convívio constante criam um senso de coletividade e pertencimento entre as jogadoras. Não é só futebol”

Outra equipe que percebeu a capacidade do esporte como mudança social e de cuidados para as mulheres é a Perifeminas F.C. O time foi fundado em 2016, por Sidineia Chagas, de 27 anos, e suas irmãs no bairro da Barragem, no extremo Sul paulistano a mais de 50 quilômetros do centro.

A ideia foi usar o esporte para mobilizar as mulheres da região. Além dos jogos, o time organiza rodas de conversa, sessões de leitura, saraus de poesia e debates sobre empoderamento, sexualidade, sororidade e igualdade de direitos entre os sexos. Elas já estudaram em conjunto, por exemplo, livros de Simone de Beauvoir e Chimamanda Ngozi Adichie.

Iniciativas como do LeSisters e da Perifeminas, aplicadas em larga escala e com incentivos públicos e privados, ajudariam no desenvolvimento futebolístico das meninas. Dados do Ministério do Esporte mostram que os meninos começam a jogar entre 5 e 10 anos de idade. Elas, em média, só após os 11.

TIME ORGANIZA CAMPEONATOS QUE REÚNE 22 EQUIPES, DE DIFERENTES CIDADES DE SÃO PAULO

MUITA BOLA PARA ROLAR

Mesmo com uma seleção de futebol feminina hepta campeã da Copa América e com a craque Marta, eleita a melhor jogadora do mundo cinco vezes consecutivas, um recorde entre mulheres e homens, o interesse da mídia pelo futebol delas não decola. E isso é uma das principais barreiras para angariar recursos para os times.

Em 2017, a SporTV, canal fechado do Grupo Globo, comprou o direito de apenas 10 partidas do total de 140 do Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino.

A não cobertura da modalidade tem consequências graves para a manutenção do esporte. Sem visibilidade, os times não conseguem patrocínio para manter suas atividades.

Foi por falta de patrocínio, por exemplo, que a corrupta Confederação Brasileira de Futebol (CBF) cancelou no ano passado a Copa do Brasil Feminina.

Felizmente, há iniciativas para tentar melhorar o cenário. Uma delas é a norma da Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol), que definiu que, a partir de 2019, clubes que não tiverem equipes femininas não poderão disputar a Libertadores da América e a Copa Sul Americana.

Outra medida, ainda em discussão, é a redefinição das dimensões de campo e bola para o futebol feminino. Como um dos argumentos para falta de interesse do público na modalidade é a menor velocidade e força do jogo delas, tem sido levantada a tese de que o esporte precisa se adaptar às particularidades biológicas das mulheres.

Isso acontece em outros esportes. No vôlei, a rede no masculino chega a 2,43m e no feminino a 2,24m. No basquete, a bola das mulheres tem dimensões um pouco menores e discute-se que a tabela, que tem a mesma altura para ambos os sexos, seja rebaixada para elas.

Enquanto isso, elas continuam trabalhando duro. Se a seleção masculina acabou de perder a chance do hexa, a equipe feminina está voando. Em abril, o time venceu pela sétima vez a Copa América. O feito fez com que elas conquistassem a primeira vaga do Brasil na Olímpiada de Tóquio, em 2020. O país ainda não está garantido em nenhum outro esporte.

O título também pôs o Brasil na próxima Copa do Mundo feminina, na França, e ainda no Panamericano, no Peru. Ambas as competições serão disputadas em 2019. Se depender da força das mulheres, o Brasil será o eterno país do futebol.

FOTOS: LeSisters

Quem escreveu

Inscreva-se na nossa

newsletter

MATÉRIAS MAIS LIDAS

ÚLTIMAS MATÉRIAS

NEWSLETTER EMERGE MAG

Os principais conteúdos, debates e assuntos de cultura, direitos humanos e economia criativa interseccional no seu e-mail. Envio quinzenal, às quartas-feiras.