O futebol tem diversos casos em que política e esporte se misturam. Um dos feitos mais recentes foi protagonizado por Megan Rapinoe. Após vencer a Copa do Mundo de Futebol Feminina, a capitão do time americano se recusou a cumprir o protocolo de visitar o presidente do país, Donald Trump. “Não irei à merda da Casa Branca”, disse ela numa entrevista.
Eleita a melhor jogadora do torneio de 2019, Megan se tornou uma voz ativa nas reivindicações por equidade de gênero e na defesa da população LGBTQ+ – a jogadora é assumidamente lésbica.
Para Juca Kfouri, o caso mostra o tamanho da potência de mobilização social do esporte.
O jornalista sabe bem o quanto pode custar a um atleta desafiar a estrutura “reacionária, corrupta, corruptora e autoritária do futebol mundial”, como ele mesmo define.
Aos 69 anos, 49 só de profissão, ele já perdeu cargos e altos salários por criticar a podridão dos porões do futebol. No final de agosto, por exemplo, a ESPN demitiu Juca (e outros sete jornalistas esportivos) depois de 14 anos de serviços prestados à emissora.
“Tomo certas atitudes porque não conseguiria me olhar no espelho se agisse diferente”, disse ele. “Até aqui me dei bem desse jeito – se amanhã me der mal, paciência”.
Num bate-bola com a repórter Karol Pinheiro, Juca falou sobre o redescobrimento da torcida do futebol feminino, as manifestações políticas ao redor de campo e casos emblemáticos do esporte.
Diante de uma repórter palmeirense, ele também não hesitou em responder se o Palmeiras tem Mundial. Afinal, the zuera never ends.
Emerge Mag: O Mundial de Futebol Feminino 2019 foi considerado a Copa das Copas para as mulheres. Esse mundial foi de fato um divisor de águas?
Juca Kfouri: Me incomoda responder que sim, essencialmente, por conta da transmissão da Rede Globo. O fato dos jogos da seleção brasileira e a final da copa terem sido exibidos na televisão deu um up na competição por aqui. Foi legal constatar a quantidade de pessoas que fizeram questão de ver os jogos. Também houve empresas que liberaram os funcionários. É uma novidade legal.
O futebol das mulheres veio para ficar por uma razão muito simples: está cada vez melhor. Os jogos são bons de se assistir e as mulheres jogam de uma maneira muito mais leal dentro do campo – não há tantos choques quanto o masculino.
Os jogos das mulheres de hoje remontam ao futebol que os homens jogavam nos anos 70 e 80 – mais pensando e menos aguerrido.
Mas a tendência é isso diminuir até devido o crescimento do vigor físico das mulheres. Aí tem uma coisa que é importante pontuar. Se você fizer um jogo de meninos contra meninas na faixa dos 7 até os 12 anos, as partidas serão equilibradas. As mulheres terão total condições de ganhar.
Mas quando o ser humano entra na puberdade, o desenvolvimento físico muda e a força física dos homens se sobrepõem a das mulheres.
Vamos falar de um caso real. A Marta é a pessoa brasileira que tem o melhor controle de todos os fundamentos do futebol – mais que o Neymar. É também por isso que ela é tão premiada – ninguém, entre homens e mulheres, foi eleita seis vezes a melhor do mundo. Messi e Cristiano Ronaldo foram cinco vezes. Agora, se a Marta for jogar contra homens ela perde no tranco. Se fosse apenas pelo talento, venceria.
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Como avalia a atuação da seleção brasileira na Copa da França?
Acima de qualquer expectativa. Temos uma mania de achar que as equipes brasileiras têm tudo para ganhar, sem que a gente se pergunte do que essa vitória é fruto.
Qual a política esportiva por trás da vitória dos nossos atletas? O Brasil tem 519 anos e não tem uma política de esportes. O poder econômico no topo do poder no Brasil não descobriu até hoje que esporte é um fator de saúde pública.
O que nós temos no esporte são gerações espontâneas. Quem fez a Marta? Ela própria. Ela foi duas vezes medalha de prata em Olimpíadas (Atenas 2004 e Pequim 2008).
O time inteiro de futebol feminino é fantástico. Vamos analisar a idade média do time brasileiro e compará-lo com as das outras seleções. Um dos motivos que leva a Formiga a jogar futebol até hoje é porque não existe uma política de incentivo a renovação de talentos. [A volante da seleção tem 37 anos e é a jogadora mais velha de seleções entre atletas e homens].
Esse problema se repete no futebol masculino. O Brasil é cinco vezes campeão do mundo no futebol masculino por causa do talento dos atletas, não por causa de uma política de categoria de base, como existe em outros países.
Na Olimpíada de Atlanta, em 1996, o Brasil ficou na frente do Reino Unido no quadro de medalhas. Aquilo não tinha nenhuma lógica, mas tentaram vender a ideia de que éramos melhores que os britânicos.
Enquanto isso, o Comitê Olímpico Britânico iniciou uma série de mudanças na política esportiva do país, que resultou na criação de mais dois centros olímpicos de excelência. Na olimpíada seguinte (Sydney 2000), o Reino Unido recuperou seu tradicional lugar entre os dez primeiros colocados – , enquanto o Brasil caiu para 52º.
O quão otimista podemos ficar com a chegada de Pia Sundhage, bicampeã olímpica, e nova treinadora da seleção feminina?
Para mim a contratação dela é um passo muito importante para o Brasil. Há anos eu já sou a favor do Guardiola para tratar dos homens [Josep “Pep” Guardiola é considerado um dos melhores técnicos dos últimos tempos, atualmente comanda o time inglês Mancherster City].
Mas aqui a gente tem uma bobagem xenófoba de que não temos nada o que aprender com estrangeiros. E, no futebol, está claro que nós temos. A Pia poderá alargar horizontes no futebol feminino.
Você já disse que “o esporte é absolutamente propício à lavagem de dinheiro”. Qual a probabilidade de times femininos nos clubes se tornarem mais “lavanderias”?
A probabilidade existe a medida em que os times femininos se tornarem cada vez mais atração e movimentar a economia do esporte. Porque a economia do esporte é intangível. O preço dos atletas é intangível. É o tal do “quanto vale o Messi?”.
Dizem que uns cinco Bale [o jogador inglês Gareth Bale, atacante do Real Madrid, é avaliado em 101 milhões de euros, cerca de R$ 326 milhões].
Pois é, mas será? E se o Messi vale isso, então, o Pelé valeria quanto? A gente não sabe, percebe? E assim se dá em outros esportes também. É aí que entra a lavagem de dinheiro, pois os preços são absolutamente subjetivos, o que abre margem para operações fraudulentas.
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Jogadoras como Marta e Megan Rapinoe aproveitaram a Copa do Mundo de 2019 para levantar suas bandeiras sociais. Qual o impacto dessas manifestações por meio do esporte?
A pior maneira de se fazer política é você dizer que você é apolítico – aí você pode virar vítima da política feita por outros. O João Havelange (ex-presidente da Fifa, falecido em 2016) foi um mestre nesse sentido. Ele dizia que à Fifa só interessava o futebol e por isso que ela se relacionava com todos os países. Sob sua gestão, a Fifa se relacionou com todos os ditadores da África e da América do Sul. Levou a Copa do Mundo de 1978 para a Argentina do General Videla (Jorge Rafael Videla, general presidente da Argentina entre 1976 e 1981), num momento em que se matava gente naquele país e os corpos eram jogados no Rio da Prata. Devido os serviços prestados, ganhou fazenda da Ditadura brasileira.
Então, o que essas jogadoras fizeram não tem preço, especialmente a Rapinoe. As manifestações dela é comparável aos que atletas americanos Tommie Smith e John Carlos fizeram em prol dos direitos civis dos negros na Olimpíada do México em 1968.
É comprável ao movimento da Democracia Corinthiana, que se inseriu na campanha pelas Diretas Já. Comparável ao que fez o Gustavinho, ex-armador do time de basquete do Corinthians, que vestiu a camiseta com a frase “Quem matou Marielle?” ao receber a taça da Liga Ouro em 2018.
Poucas áreas da atividade humana tem o poder de conscientização e mobilização que o esporte tem. O esporte cria ídolos e os tornam porta-vozes. Dizer que esporte e política não se misturam é uma tentativa de impedir processos de conscientização, nada além disso.
Mas porque a maioria dos atletas não se posiciona politicamente?
Porque eles são frutos do nosso sistema educacional. Um sistema que é feito para manutenção dos privilégios da elite e para não deixar a ascensão dos excluídos.
Quando o Felipe Melo (volante do Palmeiras) se manifestou pró-Bolsonaro, eu o defendi. Acho ótimo que jogadores se manifestem politicamente e que a gente saiba com quem está falando. Eu lamento, é uma lástima, que a posição do Felipe Melo seja essa. Gostaria até de discutir com ele sobre isso, embora não me surpreenda devido o estilo dele dentro de campo. É um apóstolo da violência.
Você sabe dizer como foi que o Sócrates despolitizado se transformou no Sócrates engajado na luta social?
Você toca num assunto que me deixa um pouco constrangido. Vou tentar te contar de uma maneira que não fique arrogante.
Quando chegou em São Paulo, o Mago era um caipira vindo de Ribeirão Preto que tinha se formado em medicina. Era absolutamente alienado. Quando jovem, ele não elogiou propriamente a ditadura. A história é que ele se manifestou, numa entrevista dada a mim para a Revista Placar, a dificuldade de acreditar que um país com mais de 100 milhões de habitantes pudesse ser dirigido de maneira democrática. Quando eu pedi num ping-pong para ele dar nota para as pessoas, ele deu uma nota alta para o Figueiredo (João Figueiredo, último general a ser presidente do Brasil, entre 1979 e 1985).
Como nós estabelecemos uma relação mais próxima – e eu percebi que ele era um leitor voraz – recomendei algumas leituras para ele. Aí foi coisa de doido. Toda semana ele me telefonava para pedir mais livros e marcar de conversar. O Mago dizia que quem o ajudou a abrir a cabeça fui eu. Mas por quê? Porque eu morava na capital, enquanto os horrores da ditadura chegavam pouco no interior.
Um exemplo de hoje. O João Doria foi eleito prefeito de São Paulo e, em três meses, os paulistanos começaram a se dar conta do equívoco. Quando ele largou a cidade para ser candidato ao governo, a cidade rompeu com ele de vez. Na eleição para o governo do estado, quando disputou com o Márcio França, que era um desconhecido, Doria perdeu feio na capital e ganhou bem no interior. Por quê? Porque o interior é naturalmente mais conservador.
Nos últimos anos, alguns jogadores de futebol criaram iniciativas para dar uma voz para a categoria, entre os projetos estão o já falecido Bom Senso Futebol Clube e o Clube dos Capitães, grupo criado por jogadores de vários clubes do Brasil para exigir modificações na Lei Pelé e que cogitou se posicionar contra a Reforma da Previdência, apesar de ter desistido da medida depois. Por que esses grupos não florescem?
Não há nada mais reacionário que a cartolagem do futebol. Não se trata de dizer que eles são conservadores. Mas sim que a estrutura do futebol é reacionária, corrupta, corruptora e autoritária.
Veja o que aconteceu com o Paulo André (ex-zagueiro, hoje diretor geral de futebol do Athletico Paranaense). Ele liderou o Bom Senso que poderia ser mais forte que a Democracia Corinthiana, pois era um movimento de atletas de várias equipes. Um belo dia, por pressões, o venderam para a China em 2014. Ao voltar para o Brasil no ano seguinte para jogar no Cruzeiro, disseram para ele que ele só seria titular se parasse de falar. Ele parou e o Bom Senso morreu. Aí alguém diz “pô, que decepção”.
Uma coisa que eu aprendi na vida é a de não exigir heroísmo do pescoço alheio. Tomo certas atitudes porque não conseguiria me olhar no espelho se não as tomasse. Mas sempre estive disposto a pagar por isso. Me dei bem desse jeito até aqui. Se amanhã vou me dar mal, paciência, paciência. Não posso exigir heroísmo de atletas. Aliás, pobre o país que precisa de heróis.
Clubes e federações têm sido chamados para se posicionarem contra o racismo, a lgbtfobia e outras discriminações e violências. Quais atitudes podem mudar a cultura discriminatória dentro dos estádios e clubes?
Você não combate essas manifestações arraigadíssimas com cartazes de “não ao racismo” e “não a homofobia”. No esporte você combate isso de maneira exemplar. Começou a gritar “macaco” e “bicha”, o juiz encerra o jogo e o time perde – além de menos três pontos na tabela. Talvez, você não consiga fazer o idiota deixar de ser idiota, mas pelo menos ele se cala para não prejudicar o time dele. E, eventualmente calado, ele pode parar e pensar que sua atitude é errada.
Agora, é preciso também ter plena consciência de algumas coisas, como que somos um país escravagista até hoje. Sugiro que leia Jessé Souza [sociólogo autor, entre outros livros, de “A elite do atraso: da escravidão a Bolsonaro”] para perceber o que estou falando. O Brasil não libertou as pessoas que foram escravizadas. O país olha o negro como se ele estivesse a serviço dos brancos. Quantas pessoas, nos altos escalões do país e na mídia, dizem que não existe racismo no Brasil? E é algo que não dá para negar.
Me ocorre uma coisa agora… Uma vez eu perguntei ao Pelé por que ele só tinha namoradas brancas. Ele me respondeu com a maior tranquilidade: “Juca, eu só frequento ambientes de brancos. Eu vou me apaixonar por quem?”. Aí eu me dei conta que o dinheiro tinha embranquecido tudo ao redor dele.
E cabe a nós, brancos, fazer um esforço verdadeiro para que essas discriminações diminuam até serem eliminadas. O mesmo vale para a homofobia e a misoginia.
Eu vi algo admirável na Copa do Mundo da África do Sul em 2010. Em Joanesburgo, na véspera da abertura do evento, fui numa manifestação pró bafana-bafanas (apelido da Seleção sul-africana, significa “meninos” em Zulu).
Numa avenida, vi um afrikaaner (branco de origem europeia, principalmente holandesa) acompanhado de uma criança de uns setes anos, que vestia a camisa da seleção nacional de futebol. Olhei para o pai e perguntei: “Mas o senhor gosta de futebol?”. Ele respondeu: “Não, o meu esporte é o rúgbi, mas o dele vai ser o futebol”, falou apontando para o filho. “Nós temos uma dívida com o Mandela [Nelson Mandela, primeiro presidente negro da África do Sul]”.
Ali eu pensei “porra”. Porque era perceptível que havia uma política, um esforço de integração, que começou com o esforço brutal do governo da África do Sul contra o apartheid e a decisão do Mandela de usar o esporte para unir o país. Essa história virou até filme [Invictus, 2009].
O VAR (árbitro de vídeo) matou o futebol?
Não, mas é usado abusivamente aqui. Virou o pronto-socorro dos árbitros. Deixam tudo para o VAR resolver. E, para piorar, pode haver interferência externa – o que desmoraliza o VAR.
Qual a ideia central do VAR? É a de fazer justiça com a mínima interferência possível. Hoje, corre tanto dinheiro no negócio do futebol que um time não pode perder um título porque o bandeirinha não viu um impedimento que a televisão mostrou que de fato existiu. Ao mesmo tempo, é uma covardia a gente querer comparar o olhar humano ao de 36 câmeras num jogo de futebol. Em última análise, eu acho que o VAR é uma medida saudável.
Em julho, quando a seleção masculina de futebol ganhou a Copa América, a torcida gritou “o campeão voltou”. Voltou mesmo?
De fato, o Maracanã cantou “o campeão voltou”. Mas você viu festa nas ruas? Não teve nenhuma. Porque a Copa América não é parâmetro. Esse grito é para o dia que o Brasil for hexacampeão mundial – e nós não estamos nem perto disso.
Perdemos muito espaço por termos virado exportadores de pé de obra. Hoje, nossos melhores jogadores estão lá fora. Até por isso os vínculos da torcida com a seleção masculina estão esgarçados. Os ídolos da torcida jogam aqui, nos clubes.
A globalização também fez um dos diferenciais do nosso jogador, a mestiçagem, se espalhar pelo mundo. Hoje, há times tradicionalmente brancos com jogadores negros – o da Holanda tem quatro.
Para fechar: o Palmeiras tem mundial?
Não. Mas o que aconteceu foi o seguinte: o Palmeiras viu o Santos, o São Paulo e o grande rival Corinthians ganharem mundiais reconhecidos pela Fifa. Aí, achou que a Copa Rio de 1951 tinha que ser seu mundial. Mas a Copa Rio era outro campeonato, que foi organizado pela CBD (hoje CBF) não pela Fifa. Essa tentativa de equipar um ao outro diminui a Copa Rio de 1951.
A Copa Rio foi um negócio do cacete! Juntou o Brasil inteiro para torcer pelo Palmeiras. Meu pai, um corintiano, torceu para o Palmeiras. Naquele momento, a vitória do Palmeiras foi , de alguma maneira, o desafogo do Maracanazo de 50 [em 1950 o Brasil perdeu a Copa do Mundo para o Uruguai em pleno no Maracanã lotado].
Então, se eu fosse palmeirense, diria aos adversários: peguem esses mundiais e enfiem no rabo, porque a Copa Rio foi muito maior que um mundial. Na Copa Rio, o Brasil era Palmeiras.
IMAGENS: Felipe L. Gonçalves/Brasil 247, Ricardo Bastos, Franck Fife/AFP e Divulgação