Ter redes de apoio e acesso a especialistas com as mesmas vivências que as nossas faz a diferença para lidar com as dores causadas pelo racismo e LGBTfobia. Conheça a Redes Vivas, especializada em atendimento psicológico virtual para negros e LGBTQI+
Para o ano de 2020, se havia algo que ninguém esperava, muito menos eu, era uma pandemia. As medidas de isolamento social impostas para retardar a contaminação em massa do covid-19 trouxe consequências não só no campo social e econômico, mas também no psicológico, sobretudo, da população negra e LGBTQI+.
É difícil ter um corpo preto numa sociedade fabricada para nos provocar sofrimento e dilacerar nossas mentes a todo instante. O maior ato revolucionário que nós, pessoas negras, podemos fazer é nos mantermos vivas em um país e num mundo que nos adoece. Mas a questão é: como fazer isso?
Os grilhões da escravidão ainda amarram o povo brasileiro, seja na estrutura social, no mercado de trabalho ou nas próprias relações interpessoais. Dado tudo isso, são frequentes os casos de angústia, estresse, insegurança, depressão e esgotamento entre as pessoas negras, sujeitos que normalmente não são associados a uma ideia de cuidado, devido a uma falsa suposição, criada ainda no período escravocrata, de que o negro é capaz de suportar as mais diversas situações de dor e sofrimento.
Conforme o Atlas da Violência 2019, 75,5% das vítimas de homicídio no Brasil, em 2017, eram negras e, de acordo com o 13º Anuário de Violência Pública, em 2018 foi registrado 66.041 casos de violência sexual contra a mulher, desse total 50,9% foram contra negras.
Será que o negro quando está em sofrimento tem acesso a tratamentos psicológicos similar ao da população branca? A psicologia brasileira está preparada para receber as demandas da população negra? Como ela tem acolhido essas pessoas?
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PIOR QUE TÁ, FICA: A PANDEMIA
A escalada de contágio pela COVID-19 expôs a realidade cruel e desigual da nossa sociedade. Com a pandemia, negros e pobres se tornam mais vulneráveis não só ao adoecimento, mas às duras consequências econômicas e sociais desta crise.
Os piores salários são pagos para trabalhadores dos serviços essenciais, constituídos majoritariamente por trabalhadores negros. Eles são 64,1% no telemarketing; 55,4% na limpeza urbana; 52,9% em serviços de segurança e 50,2% na construção civil, de acordo com a Relação Anual de Informações Sociais (RAIS – 2018).
A covid-19 não escolhe as pessoas por raça, porém, quando se acompanha as notícias da pandemia nos Estados Unidos e seu impacto sobre a população negra, surge total inquietação: onde estão os dados de contágio e mortalidade por raça do Brasil? Quais territórios estão sendo impactados?
O contágio não é seletivo, mas a letalidade da doença é desigual. Isso se dá porque, ao longo de séculos, uma parcela da população, em sua maioria negros, tem experimentado uma vida sem saneamento básico, sem água potável e sem acesso aos serviços de saúde, colocando-a em situação de vulnerabilidade.
No início da pandemia do covid-19 no Brasil, o contágio atingiu os moradores dos bairros da classe média e classe alta, já que se propagou por passageiros de viagens internacionais. Nessa etapa, as mortes subiam lentamente, já que os infectados contavam com os serviços dos melhores hospitais privados que, por muito tempo, registraram números reduzidos ou inexistentes de mortes pelo covid-19.
Porém, nas últimas semanas, as favelas e bairros periféricos, registraram os primeiros casos da doença. Assim, a mortalidade se ampliou em territórios periféricos.
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POPULAÇÃO LGBTQ+
Por sua vez, a saúde da população LGBTQI+ foi marginalizada e esquecida por ser considerada insignificante e até mesmo doentia. Na Segunda Guerra Mundial, lésbicas e gays passaram a ser submetidos aos mais absurdos tratamentos para reverter a sua orientação sexual, vista como antinatural, incomum e anormal.
Devido à morte de diversas pessoas ocorridas nesses experimentos, a OMS retirou a homossexualidade da lista internacional de doenças no dia 17 de maio 1990. Desde então, a data virou o Dia Internacional Contra a Homofobia e a Transfobia. Posteriormente, no Brasil, o Conselho Nacional de Psicologia proibiu atendimentos com a finalidade de reverter a homossexualidade – popularmente conhecido como Cura Gay. A decisão só foi chancelada de vez no ano passado pelo Supremo Tribunal Federal.
A ainda frequente exposição à discriminação somada a expectativa de rejeição e necessidade de dissimulação de sua identidade impacta negativamente a saúde mental da população LGBT+. Uma pesquisa realizada pela Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, constatou que a população LGBTQI+ tem cinco vezes mais chances de cometer suicídio do que os heterossexuais cisgêneros.
A população LGBTQI+ também é uma das que mais sofrem durante a pandemia e se torna vulnerável devido a três fatores específicos: usam tabaco a taxas 50% maiores que a população em geral (e o COVID-19 é uma doença respiratória que se mostrou particularmente prejudicial para os fumantes); estão em risco porque têm taxas mais altas de HIV e câncer, o que compromete o sistema imunológico; e também lidam com preconceito, atitudes hostis e falta de entendimento de funcionários e do sistema de sistema de saúde. E, além disso, temos uma grande parcela da população LGBTQI+, ainda mais das pessoas trans, incluídas no mercado informal de trabalho como única forma de geração de renda por causa do preconceito no mercado de trabalho e evasão escolar.
Desde sexta-feira (15/05), esta reportagem estava concluída e prevista para ser publicada nesta segunda-feira (18/05). Infelizmente, soubemos ontem do suicídio de Demétrio, homem trans negro, dançarino, modelo e performer. A Emerge conheceu Demétrio em 2018, após vê-lo numa performance no Slam Marginália, competição de poesia falada exclusiva para pessoas trans e não bináries.
De acordo com uma nota do Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros (Fonatrans), Demétrio foi “mais uma vítima do alinhamento entre racismo e transfobia, opressões que tem uma mesma raiz estrutural e que são responsáveis por milhares de mortes em nosso país. Ele denunciava constantemente em seu Instagram as violências que passava”. Segue outro trecho da nota:
“Depressão e suicídio para pessoas trans e/ou negras sempre trazem os atravessamentos dos inúmeros preconceitos e discriminações enfrentadas socialmente. Uma constante necropolítica (política de morte) subjuga os corpos de pessoas trans e/ou negras colocando-os num lugar precário onde viver é impossível”
Erika Hilton, co-Deputada Estadual de São Paulo da Bancada Ativista também usou as redes sociais para comentar o caso:
“Demétrio era um homem trans que vinha passando por uma forte depressão causada pelas dificuldades de existir plenamente em uma sociedade que nos nega afeto, trabalho, proteção… Mais um jovem é levado ao limite de suas forças por uma sociedade que insisti em nos odiar e nos matar de várias formas. Seguiremos transformando o luto em verbo, ocupando todos os espaços e lutando incansavelmente para que nenhum corpo trans fique pelo caminho”
Por fim, resgatamos um post feito pelo próprio Demétrio em 29 de agosto de 2019 no Instagram:
“Homem chora, alguns têm buceta, têm uns que são afeminados e outros com curvas e tetas e tá tudo bem. Não somos menos homens por conta dessas coisas. Se descubra, irmão, a vida é uma só. Afeto entre os seus muda muito e é sempre bom mudar (pra melhorar claro shshshs)”
A fotógrafa, videomaker e performer Núbia Abe, integrante do coletivo Emerge Mag, que conhecia e trabalhou com Demétrio, fez um post em sua homenagem:
REDES VIVAS
Tá bom, Talitha, mas por que você tá falando tudo isso?
A intenção é de mostrar o quanto precisamos de apoio e cuidado, principalmente nesse período em que estamos atravessando. Por isso, vou apresentar um projeto de atendimento psicológico virtual com profissionais negros e LGBTQI+ porque nada melhor do que ser atendido por especialistas com as mesmas vivências que as nossas e que de fato nos entenda.
Estou falando do Redes Vivas – Saúde da População Negra e LGBTQ+, criado em 2016 pelo Desabafo Social em Salvador com o objetivo de promover a saúde das populações negra e LGBTQ+ através das tecnologias de saúde. Conversei com Raissa Monteiro, que é psicóloga e está na equipe há três anos.
A profissional nos conta que o primeiro passo foi mapear os profissionais de saúde. A ação está ligada com as perspectivas de olhar não só para os sujeitos que serão assistidos nas sessões, mas também para os profissionais.
Em 2019, o serviço se tornou uma plataforma de supervisão e atendimento psicológico e terapêutico online, gerando renda aos profissionais, democratizando o acesso à terapia e promovendo a saúde mental e emocional.
O Redes Vivas mantém parceria com a Zenklub, empresa que já oferece vídeo consultas online com psicólogos e tem uma plataforma segura, especializada e credenciada pelo Conselho Federal de Psicologia. As organizações também disponibilizam para cada profissional negro e LGBTQI+ uma plataforma que promove bem-estar por meio de conteúdo, palestras e projetos.
O projeto tem três eixos: o clínico com atendimento presencial e online; a formação continuada aos profissionais de saúde (possível por meio do mapeamento inicial) e o de educação através das feiras de saúde nos territórios de Salvador.
A equipe leva em consideração os aspectos econômicos, sociodemográficos, territoriais, classe, raça, gênero, identidade/orientação sexual e busca intencionalmente profissionais negros e LGBTQI+, que reforça a identificação psicólogo/paciente e por entender que no meio da psicologia trabalhadores não negros recebem 75% a mais.
Os psicólogos, psicanalistas e terapeutas interessados em fazer parte deste time podem realizar o cadastro no site. Pacientes também se cadastram no site.
A plataforma não é gratuita, mas cada profissional estabelece o valor das sessões, levando em conta a realidade e vulnerabilidades do público, facilitam o pagamento e aceitam planos de saúde.
Eu me cadastrei e fiz uma sessão. O site é bastante simples, basta se cadastrar, escolher o psicólogo e agendar a consulta. Todos os profissionais possuem descrição do currículo para nos ajudar na hora da escolha. Após o cadastro e o agendamento, basta ter uma internet estável e um espaço adequado e livre de ruídos para realizar a sessão.
Raissa diz que neste momento de crise existem várias problemáticas que não podem ficar desassistidas, como casos de violência doméstica e relações familiares conturbadas.
“É necessário dialogar tanto com os profissionais quanto com os pacientes. Atendimento online é uma grande potência para nos conectarmos com cuidado em saúde mental das pessoas”
Vou confessar que é um processo doloroso e corajoso. Fazer terapia é um ato de coragem, mas não deve ser visto como algo distante. Por meio da psicoterapia, temos a possibilidade de trabalhar pela liberdade, o que nos leva a uma abertura da mente e do coração e permite encarar a realidade, ao mesmo tempo em que, coletivamente, criamos esquemas para cruzar fronteiras e transgredir. A terapia funciona como uma prática de liberdade.
Se você tem algum familiar ou amigo ou passa por uma situação delicada não fique em silêncio. Peça ajuda, fale com alguém e procure um profissional. Se cuide.