Ela veste blazer escuro, camiseta da banda pós-punk Joy Divison, calça jeans justa com a barra dobrada e, nos pés, coturnos. Sobre os lábios, batom preto, que combina com o delineador de mesmo tom em volta dos olhos. No peito esquerdo, à frente do coração, há alguns bottons, também de bandas, como a inglesa Bauhaus.
O semblante gótico parece intrínseco à musicista Malka, de 33 anos. Ela acaba de lançar sua primeira música em carreira solo (veja o clipe no final desta reportagem). Batizada de Pimenta, a faixa destaca o luto – e a luta – na vida de uma travesti.
A faixa conta com vocais de MC Dellacroix, jovem cantora que também levanta discussões sobre transfobia, racismo e exclusão social. No fim do vídeo, há um depoimento de Thaís de Azevedo, de 67 anos, que sobreviveu à perseguição e assassinatos de travestis durante a Ditadura Cívico-Militar (1964-1985).
Mesmo sendo uma música de protesto e com nuances dark, Pimenta traz uma mensagem positiva e com elevação de autoestima. Um clarão de esperança. Um chamado para a sobrevivência. No clipe, há a participação de mais de 30 transgêneros e não-binários.
O single é um abre-alas para novos projetos musicais de Malka. Nos próximos meses, ela lançará seu primeiro álbum, repleto de vocais, beats eletrônicos e sintetizadores.
Pianista, estudante de canto e viola de arco (ela também toca violão, baixo e guitarra), Malka é dona do estúdio 3dB Áudio, em São Caetano. Lá, ela acumulou experiência ao produzir discos de outros artistas e trilhas sonoras para cinema, espetáculos de dança e publicidade.
Atualmente, ela tem criado músicas com BadSista, produtora de Linn da Quebrada; Anastácia do Forró, cantora recifense que foi parceira musical de Dominguinhos; Verônica Valentino e, também, Sky e Anne Jezini. Com os dois últimos, a parceria consiste em releituras de músicas de Rita Lee, que serão lançadas pela Warner Music.
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DO HARDCORE MELÓDICO AO FUNK TRANS
Nos últimos dez anos, Malka acompanhou de perto a cena musical paulistana como ouvinte ou sobre os palcos. Em 2008, criou, junto com o DJ Leandro Pankk, o We Say Go, projeto que misturava DJ Set com performances ao vivo de sintetizadores e guitarras.
A dupla fez shows em casas noturnas da região da Rua Augusta e centro da capital paulista.
Também abriu shows de Peter Hook, ex-integrante do Joy Division e New Order, da cantora francesa Yelle e do músico americano Twin Shadow.
O fervo durou até 2012, com apresentações intercaladas até 2016.
Antes, Malka viveu a explosão do hardcore melódico, quando tocou guitarra na banda Starfish 100.
Também ouviu o amadurecimento do rap, na nova roupagem de Crioulo e Emicida.
E agora? Qual gênero está em ascensão?
Para Malka, assim como aconteceu com o blues e o rap, atualmente a sociedade, na marra, está começando a entender e desmarginalizar o funk.
“Várias artistas estão resignificando o funk com músicas de protesto, ao mesmo tempo que são dançantes. E na linha de frente estão as minas e as travestis, como Linn da Quebrada e a Jup do Bairro”
Malka afirma que toda música popular é de origem negra e do gueto. Dessa forma, muitos gêneros sofreram discriminação. Também é natural que os arranjos comecem simples e evoluam em complexidade com o passar do tempo. Ela cita, por exemplo, os loops e samples “básicos” do disco Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais MC’s, que influenciou toda uma geração de músicos.
“Hoje, a rapper Tássia Reis desenvolve arranjos com o pianista paraibano Salomão Soares, vencedor do Prêmio MIMO Instrumental e finalista do Festival de Montreux, na Suíça”, enfatiza Malka.
Sobre a cena musical trans, Malka acredita que o panorama está em seu melhor período, com as travestis chegando nervosas. Como uma das pioneiras, ela cita Verónica Valentino, cantora cearense baseada em São Paulo, da banda Verónica Decide Morrer.
Já no mainstream, ela destaca As Bahias e a Cozinha Mineira, além de Liniker. Para ela, foi (e ainda é) custoso artistas trans adentrarem o mundo da música. No entanto, a partir do momento que elas ocuparem o cenário, será cada vez maior o despertar entre as artistas independentes.
“Toda vez que a Liniker aparece na televisão, tem uma pessoa tomando coragem para se assumir travesti. Foi o meu caso.” diz Malka, que também tem como grande influência a cartunista Laerte.
CULTURA TRAVESTI
E para manter o progresso, é necessário hackear o Cistema (com C mesmo, fazendo referência ao padrão social, político e econômico baseado na cisgeneridade, que oprime as dissidências). É como se as travestis fossem um vírus de computador, que se infiltram onde as pessoas não querem – e Malka sabe bem como se infiltrar e causar estrondo.
Em abril deste ano, ela foi a primeira musicista trans a se apresentar na Sala São Paulo, um dos espaços de concerto mais tradicionais do Brasil e sede da Orquestra Sinfônica do estado.
A conquista aconteceu devido Malka tocar viola de arco na orquestra da Fundação das Artes de São Caetano. A instituição comemorou 50 anos de existência e parte da programação se deu na Sala São Paulo.
Além do repertório clássico, a banda que Malka integra tocou uma compilação de música popular junto com João Bosco, compositor de grandes clássicos da MPB, como O Bêbado e a Equilibrista. Na ocasião, havia várias outras travestis na plateia – as manas de Malka.
“Vamos ocupar todos os espaços, e não só na arte. Haverá travesti no funcionalismo público, em empresas de tecnologia, no comércio e na academia. Sabemos que temos a força graças as outras manas que vieram antes de nós”
Malka diz que o que está ganhando força é a produção de uma cultura travesti, no sentido de comportamento, ação e reação. E que esse movimento é retratado na arte (o espírito do nosso tempo).
Essa articulação espontânea faz com que as artistas do meio se apoiem. Quando uma sobe ao palco para cantar, outras são convidadas como instrumentistas, DJs, MCs, fotógrafas e videomakers.
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Considerando que um dos pilares da cultura travesti é ser antimachista, há interlocuções com outros movimentos, como o feminista. Em maio, Malka foi convidada para ser técnica de som no festival Hard Grrrls. O evento congrega debates, exposições e shows de bandas de punk rock para celebrar o movimento riot grrrl, a interseccionalidade e o transfeminismo.
“Nós estamos juntas e temos inimigos em comum, como o patriarcado”, diz. “Finalmente existe uma articulação a ponto dessa cena não enfraquecer”.
Neste caldo efervescente, Malka destaca a consciência política das travestis, que ainda são estigmatizadas. Elas entendem que um dos alvos é o sistema capitalista, uma vez que a estrutura político-econômica é a responsável pelo preconceito e exclusão.
Entre os 18 e 24 anos, Malka foi funcionária concursada do Banco do Brasil. Ela pediu demissão devido ao fato de não concordar com as regras da entidade para vender títulos de capitalização ao extorquir aposentados cobrando altas taxas de juros. Em sua análise, vivências dissidentes do padrão cisheteronormativo é uma ameaça ao sistema financeiro e por isso elas são perseguidas.
“O sistema do capital precisa de casais com empregos regulares, que possuem filhos, no estilo comercial de margarina, para fomentar a lógica do consumo exacerbado, que é o que sustenta, por exemplo, os investimentos em bolsas de valores”
Se para eclodir esse sistema será necessário fazer uma revolução que não acontecerá a curto prazo, entre as medidas emergenciais defendidas por Malka está a criminalização da transfobia, com duras penas para os agressores.
De acordo com a Associação Nacional de Transexuais e Travestis do Brasil (Antra), a expectativa de vida de transexuais é de 35 anos – quase metade da média nacional. O receio do preconceito e violência é o que faz muitas pessoas evitarem uma transição. Foi o que aconteceu com Malka, que levou 30 anos para iniciar o processo.
Por outro lado, por mais que haja dificuldades, ainda há o amor. Se antes ela tinha medo de uma possível rejeição, hoje, descobriu o amor sem restrição por parte de amigos, familiares e amantes. É o amor puro, que não depende de convenções sociais. E não existe entrega maior do que quando nos entendem e nos incentivam a ser o que somos.