A moda autoral é um respiro revolucionário em meio à indústria. Não obedecendo aos padrões da alta costura ou das semanas de moda internacionais e sofisticadas, o segmento abraça aquelus que não se sentem representados pelo tradicional. Originalidade, ousadia e singularidade são algumas de suas características.
Como é de se esperar, portanto, é dentro desse campo que vemos usos mais políticos da moda. Inclusive, colocar a moda como ferramenta política ou não é um debate antigo entre especialistas, apreciadores e profissionais envolvides.
Isto porque, além de ser uma das principais responsáveis pela criação e perpetuação dos padrões de beleza sexistas, racistas, gordofóbicos etc; a indústria da moda é a segunda mais poluente do planeta, atrás apenas da petrolífera. De acordo com o grupo ambientalista Stand.earth., ela é responsável por 10% das emissões anuais de dióxido de carbono (CO₂) do mundo, por exemplo.
Afinal, como pode então a moda ser política? “A possibilidade da moda se transformar em uma ferramenta política envolve a sua construção dentro do seu aspecto aglutinador e cultural, superando seu caráter de mercadoria e sua dimensão individualizante”, afirmam Vinicius Valle, doutor em ciência política pela Universidade de São Paulo (USP), e Ana Carolinna Gimenez, graduada em moda e com especialização em sociologia e política, no artigo A moda pode ser uma ferramenta política? publicado no Brazilian Journal of Development.
“É o que?”, você deve estar se perguntando. Calma, a gente explica em detalhes.
VEJA TAMBÉM: Casa de Criadores: a moda como reflexão e denúncia política
INDIVIDUAL VERSUS COLETIVO
Podemos dizer que a moda funciona de duas maneiras — que inclusive se contradizem. Escolher o look perfeito, em um GRWM (sigla para Get Ready With Me, em tradução livre: “se arrume comigo”, nome dado aos vídeos em que o usuário decide o que vestir em frente a câmera e mostra o resultado final) mostra a sua identidade e te torna “unique”.
Porém, imerso em um sistema capitalista em que centenas de milhares daquelas peças foram produzidas, sem que a gente saiba ou reflita no como e por quem foram feitas, acaba te colocando como parte de um coletivo amarrado pela indústria.
E sabemos, pois, que a indústria não é inocente, não é mesmo? A cadeia da moda, de maneira geral, é toda formulada para gerar lucro, independente das consequências. A política entra na moda quando conseguimos usar essa característica uniformizante e de aglomeração (a de criação de individualidades também) a nosso favor.
É aí que entra a moda autoral que falamos no início deste texto. Estando à margem da indústria e cheia de gente com coragem para fazer diferente, é mais fácil expressar nossas pautas, enquanto entregamos conceito, coesão e aclamação, em uma cadeia de produção respeitosa.
O argumento de Vinicius e Ana Carolinna no artigo é que a moda, enquanto aglutinadora social e sendo um dos elementos mais visíveis de categorias como classe, raça e gênero, pode ser ferramenta para expressar coletividades políticas e reforçar bandeiras.
Isto é, é necessário coletivizar a moda e construir novas formas de produção que respeitem o meio ambiente e as pessoas envolvidas na cadeia. Sem deixar, é claro, de transmitir mensagens e estética. São infinitas as possibilidades, afinal, as roupas e acessórios comunicam tanto quanto cartazes.
LEIA TAMBÉM: Bonés de crochê fazem parte da identificação da moda nas quebradas
53º CASA DE CRIADORES: FESTA DA MODA AUTORAL BRASILEIRA
Em São Paulo (SP), exemplos de como a moda pode ser política frequentam a Casa de Criadores (CDC). O evento, que acontece duas vezes ao ano, é uma celebração da moda autoral brasileira. O CDC dá destaque a novos designers e profissionais da área, fomentando criativos independentes com desfiles, shows, performances e muito mais.
A última edição em dezembro de 2023, teve ao todo 46 apresentações autorais, incluindo 29 desfiles, com 10 marcas estreantes: Herchcovitch; Alexandre, Dystopic [Rato Distópico], Visén + Kabila Aruanda, Mateos Quadros, ACZAN, ‘ a neoutopia ‘, Krixina, Patricia Kamayurá e Ruma. Ainda contou com um casting muito diverso de corpos e identidades, além de técnicas e soluções políticas criativas.
A Emerge esteve presente em boa parte do evento e nosso primeiro destaque foi o admirável trabalho de algumas marcas com o upcycling (reutilização criativa de produtos, tecidos, resíduos e peças na criação de novos itens). A começar pela ‘a neoutopia’, de Erico Valença, com a coleção antropogena naturo. A marca trouxe um mundo pós-socialista e futurista, a partir do uso de materiais de forma mesclada e estampas geradas por IA (Inteligência Artificial).
Também vale falar da RUMA, marca criada por Hellena Malditta e Rubi Ocean, drags ex-participantes do Drag Race Brasil. Elas reformularam a técnica para dragcycling, aproveitando o set do reality show nas peças, em um desfile inovador no formato de um ballroom — batalha de apresentações artísticas e um movimento da cultura LGBTQIAPN+ e negra.
A espiritualidade afro-brasileira esteve presente junto à denúncia de violência contra pessoas pretas. Com destaque para Visén + Kabila Aruanda, que trouxeram os Pontos Riscados do Candomblé em suas estampas e Cynthia Mariah que denunciou a morte de seus semelhantes. Já Volat Branding apresentou no seu desfile uma reflexão sobre a identidade do povo Yorubá.
A marca YEBO, que já tinha participado do CDC, trouxe o manifesto Eu Também Sou um Anjo, em que associou corpas de pessoas dissidentes à celestialidade.
Representantes dos povos originários, NALIMO e a estreante Patrícia Kamayurá, trouxeram a ancestralidade e a resistência de luta feminista e a descolinização da moda para as passarelas, com a coleção “moda é ancestral”.
A celebração e diversidade de corpos e gêneros esteve presente em praticamente todos os desfiles. Destacamos Dystopic, SUKEBAN, Ateliê Vou Assim + Luä Ayo Ayana e Guma Joana. Sem contar o movimento de quebrar ainda mais as barreiras da moda, trazendo coleção Moda Inclusiva e modeles PCD’s para a passarela, por Vittor Sinistra e Santista.
Finalizamos com uma reflexão feita pela A Pimentel para o desfile do Ateliê Vou Assim + Luä Ayo Ayana.
“Vocês assistirão a um espetáculo incrível feito com apoio e movimentação coletiva de pessoas trans, mas e depois, quem consome o nosso trabalho? Quem vai contratar o Lua, comprar ou produzir nossas peças?”.
A PIMENTEL
LEIA TAMBÉM: Favela Style – A Moda Das Quebradas
- Boas alternativas para a solidão feminina contra o álcool
- Twerk da Quebrada estimula autoestima de mulheres periféricas
- Edital para textos sobre periferias e justiça climática prorroga inscrição
- Virada Cultural 2025 abre inscrições para propostas artísticas
- Estão abertas 395 vagas para cursos na São Paulo Escola de Dança