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Elas comandam o balcão de drinks

27/08/2019

O Guest das Minas é um evento itinerante onde mulheres bartenders trocam conhecimento, debatem a visibilidade feminina na cena coqueteleira e, claro, apresentam seus bons drinks

O clima lembra o de um bom happy hour pós-expediente numa véspera de feriado – exceto pelo fato de estarmos em plena segunda-feira, dia em que a maioria dos bares está fechado e os consumidores estão com pouca disposição (alguns deles, ainda com a ressaca do último final de semana).

Mas essa não é uma segunda-feira comum. O bar está cheio devido à segunda edição do Guest das Minas, uma noite dedicada à visibilidade do trabalho de mulheres bartenders e seus coquetéis autorais. 

O balcão da vez é o do Bar do Beco, na Vila Madalena, não muito longe do famoso Beco do Batman, tradicional endereço do grafite na cidade. Atrás de dezenas de garrafas, quinze mulheres de vinte e poucos anos, que atuam em diferentes bares da cidade, se revezam para apresentar coquetéis inéditos.

Sou mais uma entre as 400 pessoas presentes no bar. À frente do balcão, me deparo com uma verdadeira imersão na cultura da coquetelaria.

Decido começar a noite com um “Melona”, drink da Fatinha Afonso, feito à base de Vodka com limão, limoncello Caravela, xarope de caramelo e espuma de melão. Um drink bonito, tropical e doce – do jeito que eu gosto. “Delícia”, penso eu entre um gole e outro.

Para os leigos, incluindo esta repórter que vos fala, o Guest é a chance de se familiarizar com jargões e ingredientes da moda presentes em várias bebidas de “bar em bar, de mesa em mesa”.

Um exemplo é o bitter, bebida alcoólica feita com extratos de ervas, raízes e cascas, que fixam um gosto amargo ou agridoce. O tradicional Campari, por exemplo, é um bitter. No drink Eparrey, da bartender Julia Rocha, a bebida acompanha casca de cacau com especiarias.

QUINZE JOVENS BARTENDERS SE REVEZAM NO BALCÃO PARA APRESENTAR DRINKS AUTORAIS. UM MOMENTO DE TROCA DE EXPERIÊNCIAS, APRENDIZADO E UNIÃO

Não pense que a noite é para chapar o coco.

Quem avisa é Paola França, idealizadora do Guest das Minas.

“O consumo de álcool deve ser consciente. O Guest é um rolê para apresentar a alta coquetelaria feita por mulheres. A ideia é mostrar que cada bebida tem uma nota e ensinar as pessoas a beberam melhor e com mais qualidade”

Neste ambiente, até o gelo tem um jeito particular. No drink Dadá, feito por Paola com rum Bacardi 4 anos, xarope de açúcar e bitter de cacau com canela (olha ele de novo), o gelo é uma esfera única, grande, que toma o meio do copo. O motivo do formato? Demora mais para diluir e mantém o drink gelado por mais tempo sem deixá-lo “aguado” – e também dá um visual bonito e minimalista.

UMA IDEIA NA CABEÇA E VÁRIAS GARRAFAS NA MÃO

A essa altura você já deve ter entendido que um coquetel nasce da mistura de bebidas e ingredientes. Mas combiná-los não é uma tarefa fácil.

Por exemplo, a bebida base é o ingrediente que predomina no drink. Pode ser cachaça, gin, rum, conhaque, uísque ou vodka – a última (#fikdik) é uma das bebidas mais versáteis devido à ausência de sabor.

Para chegar às receitas servidas na segunda edição do Guest das Minas, houve muita experimentação. A começar pelo fato de que as meninas não escolheram as bebidas base de suas criações, que foram sorteadas.

O sorteio fez parte de uma série de treinamentos e workshops, organizados por elas mesmas, em que cada uma expôs suas experiências, utilizando também aromatizadores, agentes colorantes, especiarias e conceitos de sustentabilidade (sim, também dá para pensar no planeta ao desenvolver drinks).

Na receita do “Marilyn”, drink de autoria de Gabriela Alves, há vodka; suco de limão; refrigerante selvagem de abacaxi, produzido por meio da fermentação da casca da fruta; espuma de especiarias típicas do estado do Pará e uma salpicada de pó de casca de abacaxi, a mesma casca que Gabi fermentou para fazer o refrigerante, que, agora, já está desidratada e triturada.

No paladar, uma sensação de refrescância e efervescência. Gabi comenta:

PAOLA FRANÇA, IDEALIZADORA DO GUEST DAS MINAS: ALTA COQUETELARIA FEITA POR MULHERES

“O futuro da coquetelaria também está na sustentabilidade, com reaproveitamento máximo dos insumos que vão nas receitas”.

O Guest das Minas é um lance ganha-ganha.

Os clientes usufruem de uma imersão de descobertas de sabores; o bar ganha um fluxo maior de consumidores; e, com o lucro do evento, as próprias bartenders estão montando kits higiênicos e de alimentação para entregarem para pessoas em situação de rua.

E para as profissionais, qual é o maior proveito? Uma noite de troca e conhecimento, de mulher para mulher. Julia D’Alessandra , uma das integrantes do grupo, diz:

“O Guest das Minas fez eu conhecer, verdadeiramente, a profissão de bartender. Eu venci uma barreira, pois, até então, tinha poucos contatos, especialmente com outras profissionais mulheres, e nunca tinha feito um drink autoral”

De acordo com Paola, foram dessas urgências que nasceu o Guest das Minas, no início de 2019.

Com mais de seis anos de experiência na área, Paola queria criar uma rede de mulheres com a qual pudesse compartilhar oportunidades de emprego, estabelecer parcerias e trocar conhecimento. A bartender diz que esse tipo de entrosamento ainda não é comum entre as manas do segmento, mas se mostra cada vez mais necessário.

“O Guest é uma parada de troca de vivência, de aprendizado e união”, resume Paola.

REPRESENTATIVIDADE ETÍLICA

A indústria de bebidas constitui um importante segmento econômico. Em 2016, as receitas chegaram a R$ 117 bilhões, o equivalente a 1,9% o PIB daquele ano, segundo um estudo do Banco do Nordeste.

Paralelamente, as vendas de bares e restaurantes também têm crescido. De acordo com a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes, o faturamento do segmento aumentou 2,5% em 2017. Hoje, é estimado que o mercado representa cerca de 2,7% do PIB.

Assim como aconteceu com o vinho há alguns anos, a coquetelaria tem ganhado força no Brasil. Entre os motivos estão a maior qualidade das bebidas nacionais e o maior acesso devido à produção em escala industrial. Na ponta da cadeia, ficou cada vez mais comum um bar buscar diferenciação com uma boa carta de drinks.

O desenvolvimento dessa cena tem dado a alguns profissionais status de estrela. E há expoentes femininas, como a brasileira Sandra Mendes, que começou a atuar ainda na década de 80 e hoje assina a carta de bares como o Caverna, Teto Solar e o do restaurante Quitéria, do Hotel Ipanema Inn.

Em 2014, Jéssica Sanchez foi a primeira mulher a vencer o campeonato de coquetelaria Vive la Révolution, promovido pela marca de vodka Grey Goose.

Adriana Pino é considerada a melhor bartender do Brasil, segundo o concurso Word Class Competition 2018.

No entanto, devido a fatores históricos e estruturais, os holofotes e os lucros da profissão ainda são de homens.

Aqui cabe uma história. Ada Coleman (1875-1966) foi uma das primeiras mulheres bartenders de que se tem registro. Por mais de 20 anos, foi chefe no bar do Savoy Hotel, em Londres. O local tinha como clientes celebridades do mundo das artes e aristocratas boêmios, como o Príncipe de Gales.

No entanto, uma das receitas de Ada, o drink  “Hanky Panky”, uma mistura de Fernet, vermute e gim, foi usurpada por Harry Craddock, substituto de Adda no posto.

EVENTO, QUE É ITINERANTE, REUNIU CERCA DE 400 PESSOAS EM SUA SEGUNDA EDIÇÃO

Em seu livro “The Savoy Cocktail Book” (1930), o picareta Harry conta a receita do drink e omite o nome de sua real criadora.

No mundo etílico, os homens também recebem salários maiores do que os delas.

De acordo com um estudo do Instituto de Política Econômica (EPI) dos EUA, em 2017, o salário médio real por hora para bartenders do sexo feminino era de US$ 12,17, em comparação com US$ 13,88 para os homens.

No Brasil, não há dados oficiais sobre a questão, mas as meninas do Guest garantem que as diferenças são gritantes.

“Com o Guest, descobrimos que tem mina fazendo coquetéis muito melhores que os caras”, diz Carine Desiderá. “No entanto, eles ganham o triplo do que elas recebem”.  

Hoje, além de Paola e Carine e Julia, também participam do Guest das Minas Lidiane Luzia e Estella Moraes, com a ajuda da Julie Xavier e Denise Justino, que, respectivamente, cuidam do marketing e do jurídico.

Além de conseguirem lotar bares, elas têm angariado patrocínios de grandes marcas, como Absolut, Havana Club, Chivas e Beefeater.

Mais do que furar a bolha masculina da profissão, o que elas querem é criar a sua própria cena coqueteleira. É o melhor lado dessa história é que elas estão conseguindo.

FOTOGRAFIAS: Natalia Martire

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