*Esta reportagem contém linguagem neutra de gêneros gramaticais.
A não monogamia soa estranha para quem quer viver um amor romântico. Eu mesma, por muitos anos, sonhei com um amor para sempre e abençoado por “Deus”. Havia toda a influência midiática e social de quão bom (e correta) é a família nuclear cristã, com papai, mamãe e filhinhos. E, dentro de casa, não era diferente. Meu pai e minha mãe são casados há quase 40 anos e nunca se traíram – pelo menos até onde eu sei, né? Mas aí o tempo passou, eu fui entendendo os meus desejos e as estruturas do patriarcado. Pois pronto, larguei o comercial de margarina e virei não-monogâmica (e assim vivo bem há seis anos, saiba mais aqui).
Acontece que, ainda hoje e com frequência, recebo olhares atravessados quando digo no almoço de domingo que meu namorade não poderia vir porque teria um ‘date’ (#barbaridade).
Então, para mostrar que os não-monogâmicos são gente boa e que não querem destruir o seu relacionamento, convidei amigues que vivem dessa forma para compartilhar suas experiências. São pessoas que se amam, se beijam e convivem com crushes e namorades uns des outres – tudo com respeito, consenso e diálogo.
Leia abaixo relatos de jovens não-monogâmicos em São Paulo.
SCHER DIAS, GÊNERO FLUÍDO, NÃO MONOGÂMICA HÁ QUATRO ANOS
Há quatro anos me entendo como não mono. Porém, por ser uma corpa preta, pansexual e gênero fluido, acabei conhecendo pessoas que não estavam dispostas a construir uma relação de afeto. Os namoros eram muito superficiais e, por muitas vezes, fui objetificada e invisibilizada. Vivemos em uma sociedade racista, cisgenera, heterossexual e monogâmica, que molda e hierarquiza os afetos. Por muitas vezes tive medo e ciúmes. Insegura, me comparava com outras pessoas; o que me deixava mais para baixo. Foi apenas em 2020 que tive um relacionamento não mono saudável. Apesar das marcas na alma, tenho conseguido construir afetos, que chamo de “dengo”. São como suspiros de alívio no duro cotidiano. Hoje, me relaciono com três pessoas, sendo duas brancas não-binárias e uma preta travesti. É uma rede de acolhimento, que potencializa a existência de todes. Digo que é uma verdadeira comunidade.
LU FORTES, PESSOA TRANS NÃO BINÁRIA, NÃO MONOGÂMICO HÁ QUATRO ANOS
A não monogamia não é apenas sobre relações sexo-afetivas. É também uma forma de repensar a centralidade das pessoas em nossas vidas, a não hierarquização das relações e a individualidade e liberdade de viver a vida a seu modo. E eu busco aplicar essas práticas em todas as relações, desde amizades, familiares e românticas até na relação comigo mesmo. Entendo que tenho diferentes relações, cada uma com características e desejos diferentes – e todas exigem tempo, dedicação, energia e responsabilidade. No momento, eu “namoro” com duas pessoas. Também há outras que nutro afetos potentes de amizade e sexo. Eu gosto de ver as pessoas que eu amo criando afetos sinceros e gostosos com outras pessoas. Hoje percebo que é possível lidar com ciúmes e insegurança com diálogo. Este processo é bem interessante, porque eu e meus namorades refletimos sobre as origens das angústias e como acolhê-las. Por fim, não sou contra a monogamia, muito pelo contrário. Acho que cada pessoa sabe como se sente melhor, e há questões que perpassam cada vivência – e elas não podem ser ignoradas.
THAY VENTURINI, PESSOA TRANS NÃO BINÁRIA, RECENTEMENTE NÃO MONOGÂMICO
Até pouco tempo atrás, eu achava que a não monogamia era sinônimo de relações superficiais. Porém, novas amizades e afetos – simultâneos – me fizeram enxergar outras possibilidades de vínculos. Ter um relacionamento é andar lado a lado, ninguém à frente ou atrás. É entender que cada pessoa e cada relação é única, e é isso que a torna especial – e não a exclusividade. Nem sempre uma pessoa vai suprir todas as suas necessidades (isso é um ideal romântico inalcançável). Ser não monogâmico é abrir espaço para a liberdade. É aceitar que outra pessoa também pode fazer bem para quem você ama – e é isso que importa. A não monogamia lida com problemas que a cisheteronormatividade joga para debaixo do tapete. Não é o fim do mundo as pessoas quererem “só sexo”, desde que sejam transparentes quanto às suas intenções e alinhar as expectativas com o outro. Ressignificar as relações é um processo nada linear, mas pode ser muito libertador.
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DANIEL ARAÚJO RODRIGUES, HOMEM CIS, NÃO MONOGÂMICO HÁ 6 ANOS
Desde o começo da minha vida afetiva/sexual, quando namorei pela primeira vez, por volta dos 17 anos, já avisei a parceria: se for para a gente se relacionar será de forma aberta. Naquela época, eu nem conhecia os termos “monogamia” ou “não monogamia”. Acontece que eu nunca tive uma visão fechada sobre a forma “correta” de relacionar. Mesmo com a minha vivência de homem cis hetero (e a construção da masculinidade), costumava pensar: “Se o homem pode, por que a mulher não?”. Foi nessa que aprimorei a empatia. O processo não foi muito difícil, mas os relacionamentos eram sempre curtos (dois meses no máximo). Lembro que, ao falar que estava interessado em outra mulher, as namoradas “aceitavam”, mas o ciúme e sentimento de posse ficavam nítidos. A monogamia não aceita tamanha sinceridade. O casal se torna um buraco negro, que suga tudo e não compartilha nada, e aí explode. Há dois anos, vivo um relacionamento não monogâmico feliz – e tenho outros tipos de amizade, algumas coloridas. Tenho um ideal utópico: que possamos ser livres para amar sem prender e machucar. Ainda preciso repensar e ressignificar certos sentimentos. Meu corpo de homem cis e negro é hiperssexualizado, e com mais chances de ser descartado. Me relacionar é complexo, muitas vezes sinto medo, me vejo como o elo mais frágil. Primeiro é preciso se aceitar, depois se compartilhar. O que vier depois é eu que decido se é bom ou ruim – porque agora eu tenho possibilidades.
DRE ARELLANO, PESSOA TRANS NÃO BINÁRIA, RECENTEMENTE NÃO MONOGÂMICO
Minhas últimas relações monogâmicas acabaram em traição – e eu fui a pessoa enganada. Com o fim do último namoro, caí em depressão e passei meses bem bad. No processo de lidar com a decepção, fui me conhecendo melhor e analisando como eu me relacionava. Solteire e livre de uma relação abusiva, prometi para mim mesme: não namorarei tão cedo. Hoje consigo entender a falsa ilusão de segurança da monogamia: o amor romântico é único e estamos destinados a uma pessoa, que proporcionará felicidade impossíveis de vivenciar sozinho, e quem dirá com outras pessoas. Após anos questionando esse cistema, comecei um namoro não mono há alguns meses. Há momentos que sinto não ter controle sobre meus sentimentos, aí eu busco ser coerente com o que acredito. São nesses momentos que ciúmes, insegurança e sentimento de posse vêm à tona. Aí me nutro com a minha liberdade – e a liberdade deixa de me assustar. Sobre a dica, digo: responsabilidade afetiva é chave.
LARISSA CANELHAS, MULHER CIS, NÃO MONOGÂMICA HÁ ANOS
Tudo começa antes da gente ter recursos para nomeá-las. Eu cresci num ambiente religioso e normativo. Logo, me ensinaram que eu só poderia amar homens (e cis). Na minha família, havia muitas mulheres que cozinhavam, limpavam a casa e cuidavam dos filhos e dos maridos. Porém, eram os homens que recebiam elogios das visitas, enquanto as mulheres eram “as bravas e mal-humoradas”. Percebi que eu não queria essa vida. Eu tinha sonhos e não os abandonaria para cuidar de um homem. Ainda criança decidi: não vou me casar. Já na adolescência, percebi que as amigas, ao começarem a namorar, paravam de usar as roupas que gostavam, deixavam as redes sociais e não iam nos rolês. Aí tive mais uma decisão: também não vou ter namorado. Nessas, me apaixonei por uma menina e por um menino (ao mesmo tempo). E eu me sentia bem (e livre) ao beijar um, mesmo também gostando da outra. Hoje aprendi a dar nome às coisas: a não monogamia é estado, uma busca, um ato político de resistência contra o rolo compressor de afetos. Não quero ser o centro de ninguém, e nem quero o corpo e alma de alguém para mim. A liberdade deixa de ser uma utopia para ser uma micropolítica cotidiana. Agora estou vivendo meu primeiro namoro não monogâmico com outra mulher. Não privatizo afetos, eu os multiplico. E, até agora, eles nunca me deixaram só.
FOTOGRAFIAS: Kalinca Maki (arrasa demais ela <3)