Se a arte performática é mesmo como os seus teóricos afirmam, um exercício contínuo de transgressão, de negação do mercado, de contestação do discurso sacralizado e de valorização da criatividade e liberdade artística, o Desvio Coletivo leva isso a sério. Nos últimos anos, o grupo tem sido responsável por realizar polêmicas performances artística do Brasil. E tem dividido opiniões – é fácil entender o porquê.
No dia 6 de abril, quando havia grande expectativa quanto a prisão do ex-presidente Lula e, em todo o Brasil, grupos realizavam manifestações contra e a favor do petista, o Desvio Coletivo estava em Curitiba para participar da II Mostra de Teatro de Segunda do Festival de Curitiba.
Para aproveitar o clima da cidade, o grupo desenvolveu a performance “Fascismo”, em que voluntários contrários à prisão de Lula vendaram os olhos com a bandeira do Brasil e pintaram as mãos de vermelho, em frente ao prédio da Universidade Federal do Paraná. Não chegou a ter tiro, porrada e bomba (quase), mas uma mistura exacerbada de aplausos e vaias.
Essa é a arte do Desvio Coletivo, que reconhece questões sócio-político-econômico significativas, se posiciona e faz artivismo (arte mais ativismo). Leandro Brasílio, produtor do grupo, comenta a ideia:
“Se tem algo acontecendo no Brasil, a arte precisa dar a sua resposta e a sua contribuição tem que ser imediata. Nossas criações artísticas refletem não apenas questões pessoais do grupo, mas também outras que estejam antenadas à conjuntura política mundial”
O Desvio Coletivo nasceu em 2011, a partir do curso de extensão universitária em Performance do Instituto de Artes da Unesp, em parceria com Laboratório de Práticas Performativas da Universidade de São Paulo.
O curso uniu os professores Marcos Bulhões, do curso de artes cênica da USP, e Priscilla Toscano, do programa Vocacional da Prefeitura de São Paulo, aos especialistas em gestão de projetos Culturais pela USP, Leandro Brasílio e Marie Auip, que também é mestranda em artes cênicas. No Coletivo, além de performers, eles são também produtores.
Composto unicamente pelos quatro artistas, ao preparar uma nova intervenção, o Desvio Coletivo abre uma convocatória para artistas e não-artistas. É realizado um workshop para os participantes que contribuem na construção da temática. Aí, partem para a rua. Marcos explica:
“Aglutinar pessoas faz com que as discussões vão para além do grupo. Cada um chega até nós não como um ator preparado para encenar uma peça, mas sim como um cidadão que tem um posicionamento sobre um assunto e, geralmente, são assuntos que dizem respeito ao momento político e social que permeia a vida de todos nós. E nosso sonho é justamente fazer essa cartografia dos problemas universais, presente na vida dos cidadãos das grandes cidades.”
DE MARINA ABRAMOVIC A HÉLIO OITICICA
A veia artística do Desvio é a Performance Arte, um movimento da contracultura que ganhou corpo a partir dos anos 70 e em que a figura do artista é a própria arte. Na vasta lista de grupo de pensadores e artistas que adotaram o gênero estão Marina Abramovic, Ana Mendieta e Joseph Beuys, no âmbito internacional, e Hélio Oiticica, Ana Maria Maiolino, entre outros, no Brasil.
As performances do Desvio Coletivo ganharam fama em 2012, com a intervenção Cegos, realizada na Avenida Paulista. Nessa ação, artistas caminhavam lentamente pela avenida, vestidos com trajes sociais e acessórios de executivos, como maletas e bolsas. Estavam cobertos de argila e com olhos vendados por ataduras. De início, soava uma crítica à petrificação dos corpos e as massacrantes relações de trabalho da contemporaneidade. Mas a performance podia ser atravessada por outras interpretações. Para Marcos, hoje, a performance Cegos assume uma nova conotação.
“Por um lado, você vê o trabalho petrificado, cujo valor é cada vez mais perdido”, afirma Marcos. “Em outro viés, também é a representação de uma classe de poderosos enlameados e cegos aos interesses da coletividade, aos interesses do Brasil.”
CONSEQUÊNCIAS DO ARTIVISMO
Por seu posicionamento, o Desvio Coletivo paga muitas vezes um preço alto. O grupo é alvo de intolerância e de sérias ameaças à integridade física dos integrantes.
Lançada em 2016, a performance Matrimônios (foto que abre esta reportagem) apresenta noivos e noivas, vestindo trajes característicos de cerimônia e celebrando o amor em toda as suas possibilidades. A ação inclui beijos apaixonados. Ela começa com uma formação de casais heterossexuais, a desfilar pelas ruas da cidade. Aos poucos, o panorama é desconstruído e os artistas trocam livremente de parceiros e parceiras, formando casais homossexuais, trisais e, às vezes, até mais. Transformando a rua no altar que celebra o amor sem qualquer tipo de preconceito, seja ele hétero, homo, bi, monogâmico ou poligâmico.
Diante deste quadro, a reação do público é ambígua. Num primeiro momento, há gritos de bênçãos, fotos tiradas com celulares, buzinaços de carros e aplausos. Quando a ordem é subvertida, a relação com o público fica problemática. Parte das pessoas reage negativamente, ofende e até ameaça os participantes e o padre que supostamente celebrou o casamento. Reações similares aconteceram tanto em São Paulo quanto em Santiago, no Chile. Marcos comenta a proposta:
“De quantas formas é possível amar? Matrimônios é uma intervenção que questiona a imposição do padrão heteronormativo, cisgênero e monogâmico como instrumento de controle social das relações amorosas. Mas, mais do que uma subversão e uma crítica, é uma afirmação positiva de formas de existências e amor”
Outra performance que causou alvoroço foi “Máfia”, realizada no vão livre do Masp dias depois da votação do impeachment de Dilma Rousseff, em 2016. Na ação de repúdio a degeneração ética da maioria da classe política brasileira, o público era convidado a cuspir em 38 fotos de políticos – incluindo a do agora presidente Michel Temer – que respondem a processos por crimes de corrupção.
Durante a ação, a integrante Priscilla defecou e urinou na foto do deputado Jair Bolsonaro. Logo, um vídeo da cena passou a circular na internet e despertou a ira dos apoiadores do deputado. Quase que instantaneamente, ela passou a receber ameaças de morte e, até mesmo, de estupro coletivo. O fato fez com que ela mudasse de visual, endereço e emprego.
“Foi algo que aconteceu há dois anos e ainda causa impacto na minha vida e na do grupo”, diz ela. “Há três meses soltaram fake news de que eu serei candidata a deputada federal”.
Para além da integridade física, a abordagem do Desvio Coletivo também provoca entraves para angariar patrocínios.
De acordo com Leandro, não é que o grupo não encontre patrocinadores. É que não procurar patrocinadores é um posicionamento político do grupo. Não há como determinar no que uma performance irá se transformar. E isso implica que não há como o coletivo assegurar ao patrocinador (um símbolo de poder na cidade), que não irá criticá-lo.
“A liberdade de expressão fica maculada quando o artista não pode fazer uma reflexão do próprio sistema. Na prática, é isso o que acontece no Brasil, pois é o mercado quem dita todas as regras”
Ciosos de que a liberdade de expressão é a força motriz de seu trabalho e que a autocensura não é uma alternativa, o Desvio Coletivo se auto sustenta e busca multiplicar os cachês (quando eles existem) de festivais de arte que participa desde 2012.
Nos últimos anos, o Coletivo participou dos festivais Aurilac, na França, Georgetown, na Malásia, e Ansan Street, na Coreia do Sul. Também integrou mostras nos Estados Unidos, Holanda, Suíça, Chile, Costa Rica e República Tcheca, entre outros países.
Uma das mais recentes foi no Brasil, a Mostra Teatro de Segunda de Curitiba, em que o grupo aceitou participar sem ganhar cachê, pela importância do evento para a cena da performance arte no país.
Outra forma de angariar recursos são os tradicionais financiamentos coletivos. No entanto, o grupo inverte a dinâmica que os principais sites de crowdfunding adotam, baseado na relação de pedidos e recompensas, geralmente produtos personalizados.
Para eles, o oferecimento de itens consumíveis esvazia a crítica e a reflexão do projeto. Assim, em 2017, quando recorreram ao financiamento coletivo para uma circulação internacional, as recompensas eram objetos com conceito artístico, criados por outros artistas e que tinham relação com o trabalho desempenhado pelo Coletivo.
Por fim, outro alvo de crítica do Coletivo quanto o assunto é financiamento é a má divisão de incentivos por parte da Prefeitura de São Paulo, observada em vários governos, seja de direita ou de esquerda. Leandro cita o orçamento anual de R$ 140 milhões do Theatro Municipal.
“O Theatro Municipal pode e deve continuar existindo, mas a sua existência não pode comprometer as inúmeras manifestações culturais e artísticas que existem em todos os lados da cidade”, diz ele. “Muita arte acontece fora de lá.”
IMAGEM DE TOPO: Amanda Vicentini Simonetti