É sábado. Uma estreita ladeira do bairro de Itaquera, zona leste da capital paulista, leva ao lugar marcado para acontecer a festa Sarrada no Brejo. Por volta das 15 horas, uma concentração de mulheres lésbicas e bissexuais, gordas e de maioria negra se intensifica na porta do local. Elas vestem roupas de banho.
Esta edição será na piscina e foi chamada de “Pererecolândia”. O dia nublado parece não assustar o público. No entorno, diversas casas e um comércio de bebidas, onde homens de meia-idade observam o movimento. Liz Delon, uma das idealizadoras do evento, comenta: “Acho que os moradores daqui nunca viram algo assim”.
Definitivamente, a Sarrada no Brejo é um acontecimento com proposta única na cidade. Surgiu como uma urgência de baile funk para lésbicas e bissexuais, mães (leia mais abaixo), especialmente gordas e afro-indígenas, que não se sentiam à vontade em festas abertas ao público em geral.
O ambiente da Sarrada não é tóxico. Proíbe-se a entrada de homens, enquanto as mulheres são aceitas independentemente de seu tamanho, seja manequim 36, 52 ou maior. Aliás, quanto mais curvas, mais exaltadas elas são. Não há espaço para preconceitos.
“Meninas gordas já nos disseram que nunca tinham usado um biquíni na vida, mas que na festa se sentiram à vontade para vestir o traje”, afirma Fernanda Gomes, uma das criadoras da Sarrada No Brejo.
MINHA LÍNGUA TE AMA
Como o próprio nome alude, a celebração privilegia o funk, um gênero controverso, ameaçado de censura por políticos, instituições religiosas e que recentemente teve uma música banida das principais plataformas de streaming por fazer apologia à violência contra a mulher. Fernanda comenta o tema:
“As pessoas não conhecem o funk. É um ritmo completamente diferenciado. Há muitas letras que são de mulheres lésbicas, que fazem referência à nossa vagina, com cuidado e responsabilidade”
Entre as expoentes desse movimento estão MC Carol e o Sapabonde, grupo de funk de Brasília. Nas festas também tocam versões lésbicas para músicas de sucesso, como a que a rapper e DJ paulistana Luana Hansen fez baseada em Deu Onda, de MC G15.
Fernanda ainda diz mais. Para ela, não é só o funk que pode ser violento, mas também o sertanejo e o axé. Ela cita como exemplo a música Olha a Onda, do grupo de axé Tchakabum, sucesso dos anos 2000, que usa o termo “barriguda” de forma pejorativa. Na festa, entre uma música e outra, as organizadoras usam um microfone para refazer, na hora, letras abusivas.
Com o som rolando solto, o público capricha nas coreografias. Em certa altura, as gordas são incentivadas a executarem um lap dance, dança sensual onde a dançarina se move encostando o corpo no colo de quem assiste à performance, que geralmente está sentada. Fernanda fala do clima:
“É importante as mulheres terem um momento delas, se sentirem sensuais e se divertirem. E que as mulheres magras se acostumem com nós”
Em média, 200 mulheres lésbicas e bissexuais, entre 18 e 50 anos, participam do evento, que costuma ser itinerante e realizado preferencialmente nas regiões periféricas da cidade. O maior público registrado foi no carnaval de 2017, quando 920 mulheres prestigiaram a SarraFolia.
O nome também leva uma curiosidade. “Brejo” é uma gíria para definir um lugar onde há grande concentração de lésbicas: as sapas – o que remete a “sapatão”.
A festa é uma atração barata. Para se ter ideia, na segunda edição da “Pererecolândia”, o serviço de guarda-volumes saía por R$ 3,00. Todo o lucro é revertido para ajudar mulheres desempregadas, em situação de rua ou endividadas. Algumas edições também arrecadam alimentos para a Ocupação Alcântara Machado, localizada embaixo de um viaduto próximo à região central de São Paulo, que abriga cerca de 90 pessoas em situação de rua.
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BREJINHO
A Sarrada no Brejo é cheia de boas surpresas. Também há uma creche para os filhos das frequentadoras ficarem em local seguro enquanto as mães curtem o baile. Batizado de Brejinho, o espaço fica nos arredores da festa. Mães amigas das organizadoras cedem suas residências para que as crianças passem a noite em segurança. São aceitos dez pequenos por noite, sem restrição de idade.
Há sempre dois cuidadores, um homem e uma mulher. Além de zelar, eles realizam atividades lúdicas e contam histórias sobre respeito à diversidade e combate ao racismo.
A ideia de oferecer a creche nasceu de uma demanda das próprias criadoras, Fernanda e Liz, que aparecem na foto que abre esta reportagem ao lado de Márcia Fabiana e Ariane Oliveira.
Elas são mães de Rhyan e Jhonatan, ambos de 7 anos. Criam os filhos de forma independente e não tinham com quem deixá-los.
O problema não é exclusividade delas. De acordo com o IBGE, é estimado que mais de 11,6 milhões de famílias brasileiras são formadas por mulheres sem cônjuge e com filhos. Ao mesmo tempo, cerca de 5,5 milhões de crianças não possuem o registro do pai na certidão de nascimento.
Em muitos casos, mães solo não têm com quem deixar os filhos eventualmente e, quando pobres, não podem contratar uma babá. Nestes casos, a maternidade pode impedir que elas tenham uma vida social ativa e que exercitem sua sexualidade. Fernanda traça um panorama de sua própria história:
“Durante anos, minha vida girou 24 horas por dia em torno do meu filho. Hoje, consigo ter um momento meu e sei que outras mães também. Com a creche, ele fica seguro, alimentado e brinca com outras crianças. Enquanto isso, eu posso curtir minha liberdade sexual e de gênero”
IN MEMORIAM
Hoje, a Sarrada no Brejo é uma das atividades sustentadas pela Coletiva Luana Barbosa. Sim, “a” coletiva, criada em memória de Luana Barbosa dos Reis.
“Luana foi uma negra, lésbica, caminhoneira (aquelas com expressão de gênero associada ao masculino), mãe de um menino, que morava em Ribeirão Preto e foi assassinada aos 34 anos pela polícia militar”, explica Fernanda.
O caso aconteceu em 8 de abril de 2016. Durante uma abordagem policial, enquanto levava o filho adolescente para um curso de informática, Luana foi brutalmente espancada por seis policiais e morreu cinco dias depois, devido a um traumatismo craniano. Apesar da violência e abuso dos militares, o Ministério Público arquivou o caso, assim como faz com tantas outras ocorrências de LGBTfobia.
“Naquele momento, nos vimos na mesma situação que a Luana e com pavor de ser a próxima vítima”, afirma Fernanda. “Aí decidimos criar a coletiva”.
Nove mulheres negras, todas periféricas, sendo duas mães, oito lésbicas e uma bissexual sustentam as atividades da Coletiva Luana Barbosa. Elas realizam conversas temáticas sobre relacionamento abusivo, violência contra a mulher, redução de danos, solidão da mulher negra, saúde da mulher lésbica e bissexual, gordofobia, entre outros assuntos.
Extraoficialmente, elas também realizam um triste trabalho: contam e divulgam o número de lesbocídios ocorridos no Brasil anualmente. Até o dia 29 de janeiro de 2018, registraram-se 12 mortes.
Este fúnebre cenário não inibe as mulheres da Coletiva Luana Barbosa. Ao contrário, proporciona força para que todo ano sejam promovidos eventos como a Caminhada de Mulheres Lésbicas e Bissexuais, o que tem dado visibilidade à causa e a busca particular por direitos. Elas existem e resistem.
IMAGEM: Kalinca Maki