Como disse o rapper Sabotage, “quem vem das ruas não joga fácil” – e Hudson Rodrigues, de 36 anos, sabe bem disso. Há uma década, ele se dedica à fotografia urbana. Suas fotos retratam personalidades anônimas, tendo como cenário a beleza visceral de São Paulo.
É a fotografia próxima a uma pesquisa antropológica. Suas imagens revelam o modo de agir, crenças e manifestações artísticas de um grupo de pessoas. Um retrato de uma organização social. Grande parte de suas fotos são feitas em feiras livres, atos políticos e festas abertas.
“É intuitivo. Me coloco em diferentes situações e lugares para conhecer gente”, afirma Hudson. “O ser humano é lindo e louco.”
[vc_row][vc_column offset=”vc_col-md-5″][post_gallery caption=”Veja a galeria de fotos”][/vc_column][vc_column offset=”vc_col-md-7″][vc_column_text]A beleza pode ser encontrada ao se deparar com uma senhora com tranças coloridas, turbante e colar de metal e pedra. Se ele faz uma foto, ela retribui despertando uma sensação de paz.
Já a loucura, essa vem ao encontro de Hudson por meio de gritos ameaçadores. Num dia, enquanto fotografava em um evento de música no centro da cidade, ele, sem perceber, registrou vendedores de uma feira de contrabando.
Foi como se o flash tivesse soado um alarme e os vendedores criaram um motim. Para escapar de um linchamento, Hudson teve que conversar por longos minutos com o líder do grupo. A solução foi apagar todas as fotos.
DESCONSTRUÇÃO E CÓPIA
A primeira vez que Hudson tentou comprar uma máquina fotográfica, no final dos anos 90, não deu muito certo. A câmera, na época ainda analógica, era muito mais cara do que ele tinha imaginado.
Anos depois, adquiriu uma câmera digital. No entanto, a devolveu no dia seguinte. Sentiu medo sobre como poderia explorar aquela forma de expressão tão desejada desde adolescência. Para amenizar a insegurança, recorreu a livros técnicos. Ao mesmo tempo, se debruçou sobre grandes nomes do fotojornalismo, como Robert Capa e Cartier-Bresson, da icônica Agência Magnum.
Apenas em 2007, quando já tinha se graduado em design gráfico, teve certeza sobre qual estética desejava. A compra da máquina foi consequência.
Mas o olhar de design tende a buscar simetria, enquadrar perfeitamente a imagem. Ele, então, passou a tirar fotos sem olhar o obturador – como um pintor que cria de olhos vendados.
O exercício, feito até hoje, é encarado como um processo de desconstrução. Para ele, a evolução técnica consiste em copiar e desconstruir.
“A foto materializa um processo criativo de busca e interpretação de diferentes referências, que é a sua bagagem. Se o processo de copiar for bem feito, o resultado final será autêntico e original”.
E quem ele tem “copiado”?
Uma das influências atuais é o fotógrafo japonês Nobuyoshi Araki, de 77 anos. Conhecido por suas fotografias de nu feminino, Araki já lançou quase 500 livros e é um dos fotógrafos mais renomados do Japão.
É de sua autoria o retrato de Björk para a capa do álbum Telegram, que a cantora islandesa lançou em 1997.
Outra obra é a série de retratos realizados em diferentes cidades do Japão – feita de forma contínua desde a década de 1970. “Um sonho impossível? Fotografar todas as pessoas do meu país”, afirmou o artista numa entrevista em 2015.
Os retratos de anônimos de Araki lembram as obras de Hudson. E são esses pequenos elos, selecionados num oceano de pixels, que fazem com que o artista paulistano consiga despertar sua criatividade para um novo ensaio autoral. É a desconstrução por meio de infinitas referências.
Recentemente, Hudson participou de uma projeção fotográfica no Disjuntor, espaço de eventos no bairro da Mooca. Sua exposição foi batizada de Bambas, em alusão à música de Martinho da Vila.
“As fotografias mostravam pessoas negras, de periferia, nas ruas. Eram todos bambas.”
VOLTA ÀS ORIGENS
Criado nos arredores de Americanópolis, na zona sul paulistana, Hudson tem buscado uma nova estética para suas fotos.
Desde o último ano, a intenção é resgatar o conceito que despertara seu encanto por fotografia ainda na adolescência, quando costumava sair com amigos para beber e andar de skate.
Hoje, Hudson costuma preparar previamente suas saídas. Nas vezes que tentou andar a esmo, sentiu ansiedade, um transtorno recorrente do fotógrafo.
Os lugares preferidos são aqueles com aglomeração de pessoas. Em agosto, por exemplo, ele compareceu à Marcha do Orgulho Crespo, que reuniu milhares de pessoas na Avenida Paulista.
Concebido em 2016, o evento tem como objetivo fomentar o debate sobre como o uso de cabelos cacheados e crespos é um símbolo de resistência e libertação para os negros.
“Sou um cara negro, então quero fotografar negros. Não como obrigação, mas com o objetivo de representar o negro e fazer com que ele se enxergue nas minhas fotos.”
Quando a conversa entra no tema racial, Hudson, previamente, explica que foi criado numa família muito protetora e amorosa. E isso fez com que ele não percebesse o racismo até próximo à fase adulta. Mas a ficha caiu.
Ele também atua como fotógrafo em casamentos. E, muitas vezes, os únicos negros que encontra nos eventos “estão com bandejas nas mão.”
Para o fotógrafo, a situação não afirma, necessariamente, que os noivos sejam racistas, mas sim que eles não convivem com negros em seu círculo social, seja na faculdade, trabalho ou em momentos de descontração.
“O problema é: os lugares reservados para cada um ainda são bem delimitados.”
E, para Hudson, é aí que reside o racismo no Brasil. O racismo é estrutural e institucional.
De fato. Um relatório da Nações Unidas, publicado em 2014, apontou que os negros no Brasil, em comparação aos brancos, são os que têm menor escolaridade. Por consequência, têm os menores salários, maior taxa de desemprego, menor acesso à saúde e menor participação no Produto Interno Bruto. Também ocupam menos postos nos governos.
Ao mesmo tempo, o relatório afirma que os negros são os que mais são assassinados e os que mais lotam as prisões. Também possuem seis anos a menos de expectativa de vida do que o restante da população.
E qual é a solução? Hudson responde:
“Temos que se ligar onde não tem negro e colocar ele lá dentro, como em escolas e empresas e na mídia. Garantir direitos e oportunidades, dentro do contexto de igualdade racial, para as diferenças se dissolverem. E não é ‘ajuda’. É reparação histórica.”
COMUNIDADE VIRTUAL
O Instagram tem sido o principal meio de divulgação do fotógrafo. Hudson acumula mais de 30 mil seguidores. Suas fotos são compartilhadas por contas de curadoria internacionais, como LensCulture e Hikari Creative.
Nos últimos meses, o próprio Instagram passou a sugerir o perfil de Hudson para outros usuários. O ponto negativo da promoção foi atrair contas falsas, que passam a seguir perfis que estão em alta para driblar os algoritmos que caçam e excluem perfis fakes.
Ao mesmo tempo, a popularização do perfil tem chamado a atenção de sites e empresas. Ele já foi convidado, por exemplo, para fazer fotos para a marca hoteleira Ibis.
Hudson também costuma ter seu trabalho publicado em revistas e sites, como a Vice. Ano passado, o site fez um compilado de 22 fotos de beijos no carnaval paulistano registrados pelo fotógrafo.
Mas exposição na mídia e seguidores de Instagram não pagam boletos. Hoje, Hudson trabalha como designer gráfico na marca de lingerie Hope. Ele também atua como fotógrafo social, principalmente em aniversários e casamentos.
É possível transmitir seu estilo autoral em fotos tradicionais?
Ele revela que sim. A pegada é deixar os noivos viverem intensamente a celebração da união. Enquanto isso, o fotógrafo fica na espreita para registrar os momentos com transparência. Assim, é possível, por exemplo, registrar noivos fumando para amenizar a ansiedade. Do mesmo modo que gente bêbada dançando também entra no álbum matrimonial.
No início do ano, Hudson se associou aos fotógrafos Marcos Muniz e Felipe Larozza, editor de fotografia da Vice. Juntos, eles formam o coletivo Brasa. A ideia é se reunir eventualmente e tirar fotos juntos.
“É como se fosse uma banda de garagem, em que cada um toca o mesmo instrumento, mas fazendo um som diferente.”
E, assim, Hudson segue o baile.
Acompanhe o perfil de Hudson no Instagram.
IMAGENS: Hudson Rodrigues. Foto de abertura por Rafael Karelisky.