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Por um mundo sem prisões com a Cia. dxs Terroristas

17/05/2021

O coletivo Cia. dxs Terroristas defende a fim do sistema carcerário e lançou um festival de arte para debater abolicionismo penal

O coletivo Cia. dxs Terroristas defende o fim do sistema carcerário e lançou um festival de arte para debater abolicionismo penal

Patrícia Cândido se reivindica uma sobrevivente. Egressa do sistema prisional, ela deixou a Penitenciária Feminina “Dra. Marina Marigo Cardoso de Oliveira”, localizada no Butantan, na zona oeste da capital, em 2011, após cumprir pena de um ano e quatro meses. “O cárcere busca o tempo todo matar tudo o que há dentro de você”, diz ela. No inferno de grades e concreto, foi a arte que a salvou. Na prisão, Patrícia teve o primeiro contato com a poesia, graças a professora voluntária Anita Bertuol – hoje sua grande amiga. Graças à arte Patrícia voltou a ter esperança em dias melhores — e eles chegaram.

Liberta, Patrícia fundou o sarau Portas Abertas, uma reunião poética que acontece em sua casa e reúne quem tiver afim de colar no rolê e mostrar sua arte. O sarau deu tão certo que, em 2015, Patrícia escreveu o livro “Antologia Sarau Portas Abertas Vol. 1”, que apresenta poesias que foram declamadas nos encontros. Ela comenta:

“Não fosse a poesia, eu não estaria mais aqui. É a arte que não me deixa regredir. Porque o crime está de portas abertas para mim — enquanto a sociedade e as empresas me excluem por ter passagem no sistema prisional”

A ressurreição e a resiliência de Patrícia é formidável, mas não pode ser generalizada. Como ela mesmo ressalta, o sistema prisional é feito para moer gente e condená-las à morte (física ou simbólica). No Brasil, esse sistema tem a particularidade de ser especializado na carne mais barata do mercado: negra e pobre. O país tem a terceira maior população encarcerada do mundo: são 773.151 presos, atrás apenas de Estados Unidos e China. Ao mesmo tempo, o Brasil é um dos países com o maior índice de violência, com taxa de 27,8 homicídios a cada 100 mil pessoas, de acordo com o Atlas da Violência 2020. E há outra questão: nossas leis não são efetivas. A Lei de Crimes Hediondos, criada na década de 90, não diminuiu o latrocínio (assalto à mão armada seguido de morte); a Lei Antidroga, de 2006, não diminuiu o tráfico; a Lei Maria da Penha, 2006, e a Lei do Feminicídio, 2015, não diminuíram a violência e o assassinato de mulheres. Se esses dados parecem não fazer sentido, é porque eles realmente não fazem.

O que fazer com uma política pública de encarceramento ineficiente?

Para o coletivo multiartístico de corpas dissidentes Cia. Dxs Terroristas a resposta é reta: acabe com ela! O grupo de artistas defende o Abolicionismo Penal, movimento que aponta as diversas falhas dos sistemas penais modernos e busca alternativas mais eficientes e humanas para ressocializar infratores. O conceito surgiu na segunda metade do século 20 nos países escandinavos (Dinamarca, Noruega e Suécia), região com poucas prisões e criminalidade quase não existe.

“As pessoas são muito mais livres do que pensam. Elas tomam por verdadeiro temas fabricados em um momento particular da história — e essa pretensa evidência pode ser criticada e destruída”

Michel Foucault, em Ditos e Escritos: Ética, Sexualidade e Política.

LEIA TAMBÉM: A chacina do Jacarezinho e porque precisamos falar de abolicionismo penal

FOGO NAS PRISÕES

Em junho, a Cia. dxs Terrorista promove o 2º Festival Powlítico de Copas Rebeldes, com o tema “Fogo nas Prisões”. O evento é uma convocação pública de compartilhamento de saberes de tecnologias de resistência e defesa às violências do aparato criminal com foco em artistas ativistas e demais entusiastas do abolicionismo penal. E uma curiosidade: o encontro é inspirado no Festival CompARTE por las Humanidad, organizado anualmente pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional, grupo guerrilheiro de camponeses e indígenas do México. #bafo

O Festival da Cia. dxs Terrorista não tem curadoria. A ideia é que a programação seja criada coletivamente. E como faz isso? Simples: quem tiver propostas de aulas, performances, rodas de conversa, entre outras atividades culturais, se inscreve nesse link e pronto, será atração do festival.

De acordo com Uma Luiza Pessoa, integrante e oficineira musical da Cia. dxs Terrorista, alinhar temas sociais e políticos ao universo da criatividade é uma estratégia de sensibilização:

“A arte é um meio que permite a gente reconhecer o outro e imaginar a sua realidade. E diante da vivência do outro, questionamos a nossa própria existência”

Patrícia, que foi apresentada no começo desta reportagem, também é oficineira da Cia. dxs Terrorista no projeto “TRANSgressoras ou como recuperar o fôlego gritando”, que oferece formação técnica e profissional em performance, interpretação, fotografia, maquiagem, editoração, edição de som e áudio e comunicação escrita para pessoas trans – muitas também com passagem.

O INIMIGO É OUTRO

Fundada em 2015, a Cia. dxs Terroristas não nasceu como um coletivo abolicionista penal. Um de seus primeiros trabalhos é “Pátria Amada”, performance onde os artistas tentam limpar o vermelho sangue que mancha a bandeira verde e amarela de um país fundado sob sangue indígena e que, ao longo de sua história, se especializou em se desfazer de sua população, em especial a negra, jovem e LGBTQIA+.

Acontece que o coletivo está instalado na zona norte de São Paulo, região com o maior número de instituições da Polícia Militar da cidade — ficam nessa região a Academia Militar do Barro Branco, que forma os oficiais da PM, o COE (Comando de Operações Especiais), a força de elite da polícia, o canil, o hospital e o presídio da PM. Ao realizar estudos sobre o sistema policial ao redor, houve aproximação com pessoas egressas e estudiosos do tema, como Victor Siqueira Serra e sua monografia “Pessoa Afeita ao Crime – criminalização de travestis e o discurso do TJ-SP”.

“A realidade moldou o coletivo”, diz Murilo Gaulês, fundador da Cia. dxs Terroristas. “Não podíamos ficar de braços cruzados e ignorar o impacto da lógica punitivista na vida das pessoas”.

Também integraram o coletivo o pesquisador Diego Nascimento, a produtora Aline Oliveira e a assessora Donna Neném. Juntos, eles criam terrorismos poéticos, o nome dado a suas intervenções artísticas, inspiradas no conceito do filósofo anarquista Hakim Bey.

Sugerir a abolição das prisões como remédio para a violência pode causar estranheza. Porém, o quão assustador são cenas de pessoas em celas superlotadas, com acesso precário à higiene e saúde, se alimentando de comida vencida e sob a ameaça constante de sofrer violência física, sexual e psicológica?

O cárcere é uma verdadeira escola de brutalidade. Murilo reflete sobre, por exemplo, o tratamento dado a pessoas que cometem crimes sexuais:

“Quando um estuprador chega na prisão, ou ele morre ou é estuprado. Portanto, ao colocar essa pessoa no mesmo ambiente que as demais, o que fizemos foi criar novos estupradores”.

Para ele, não há fórmulas prontas para implementar o abolicionismo na realidade brasileira, mas ele parte da necessidade de lidar com humanidade e acolher as vítimas e os infratores. Assim, a questão não é tanto sobre como a gente resolve “o crime”, mas sim sobre como a sociedade cria mecanismos que o reduza de fato.

“Por que pessoas trans roubam?”, indaga o fundador da Cia. dxs Terroristas. “Porque não conseguem emprego e estão cansadas de se prostituir, por exemplo”.

Em “Estarão as prisões obsoletas?”, Angela Davis, que passou pelo sistema prisional americano em 1970, quando o governo americano perseguiu os Panteras Negras, lança mão de interpretação semelhante. Segundo a autora, as prisões nos livram da responsabilidade de lidarmos com os verdadeiros problemas da sociedade, principalmente aqueles produzidos pelo racismo e também pelo capitalismo, como a ausência de serviços básicos à população como educação, saúde, moradia e trabalho.

Destruir algo é muito mais fácil do que construir. Construir leva tempo e nem sempre as respostas estão imediatamente na nossa frente. Mas, apesar de não ser possível predizer quando mudanças vão acontecer, podemos nos organizar e fazer o trabalho de base para estarmos prontos quando os momentos surgirem. E, como cantou os Racionais MC’s na canção Artigo 157, “o dia D chegou e esse é o lugar, então, aqui estou”.

FOTOGRAFIAS: Rafael Félix

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Em 2020, a Emerge entrevistou Maria “Masha” Alyokhina, ativista russa do coletivo Pussy Riot, que foi presa após realizar protestos contra o Governo Putin e a Igreja Ortodoxa. Confira a conversa em “A prisão serve para te quebrar – e ser você mesma é a sua melhor a arma“.

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