Sob o manto da guerra às drogas, jovens negros e pobres são mortos e encarcerados – e o abolicionismo penal é uma alternativa ao genocídio da periferia
Uma operação ilegal da Polícia Civil para cumprir 21 mandados de prisão se torna uma chacina com 28 mortes. O cenário com casas invadidas, poças de sangue pelos cômodos e corpos sendo carregados em lençóis aconteceu no Favela do Jacarezinho, na Zona Norte do Rio de Janeiro na última quinta-feira (6/05).
A chacina é mais uma prova de que sistema penal brasileiro e a lógica de guerra às drogas têm mais a ver com genocídio de corpos periféricos do que com segurança pública.
Em junho do ano passado o Supremo Tribunal Federal, estipulou, pela Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, que durante a pandemia operações policiais não urgentes em favelas sejam suspensas ou previamente comunicadas ao órgão – o que não aconteceu no Rio de Janeiro.
O ápice da violência estatal se dá por vários motivos. Um deles é que políticos se elegem (e governam) com a premissa de que segurança pública é uma guerra entre os cidadãos de bem, representados pelo Estado e a polícia, e o crime organizado atuante na favela. “A polícia vai mirar na cabecinha e… fogo”, disse Wilson Witzel ao ser eleito Governador do Rio de Janeiro em 2018. Embora Witzel esteja fora do jogo porque sofreu impeachment em meio a acusações de desvios de recursos públicos (moral e bons costumes, né?), a lógica assassina possui representantes em todo o país – e não é de hoje.
No livro Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão, de 1975, o filósofo francês Michel Foucault conclui que “a prisão é usada como solução há mais de 200 anos para os problemas que ela mesma cria”. Aplicado a realidade brasileira, os conceitos do professor da Sorbone são inflamados pela segregação racial de um país que por mais de 200 anos escravizou negros. Dessa forma, por ter sido forjado pelos representantes da Casa Grande, o racismo está na estrutura social do país. Se não é mais tolerado senzalas, então ergam-se prisões. Um exemplo é o Código Penal de 1890, que configurava como crime expressões culturais afro-brasileiras, como a capoeira, que era tipificada como “vadiagem”. Por sua vez, os artigos 157 e 158 puniam, respectivamente, “a prática do espiritismo, da magia e dos sortilégios” e o “curandeirismo”. Assim, de 1890 a 1941, mães e pais de santos em todo o país foram parar em delegacias acusados de ser “feiticeiros”. No livro Encarceramento em Massa, publicado em 2018 por Juliana Borges, a autora comenta:
“A fundação das instituições criminais brasileiras se deu num momento que a República precisava formalizar o controle racial após a abolição da escravatura”
Hoje, o Brasil tem a terceira maior população encarcerada do mundo: mais de 750 mil pessoas. E o problema só cresce. Entre 2005 e 2019, a quantidade de pessoas privadas de liberdade cresceu 154%, de acordo com o último Anuário de Segurança Pública. No mesmo período, a proporção de negros nas prisões cresceu 14%, enquanto a de brancos caiu 19%. Entre as razões para o aumento está a condição de pobreza em que as pessoas negras estão inseridas, o que dificulta o acesso aos direitos civis. Devido a vivência em territórios de vulnerabilidade, pessoas negras também mais cooptadas por organizações criminosas.
E quando um jovem periférico negro cai mão da polícia, caso ele sair vivo, o judiciário lhe tratará com maior severidade em comparação, por exemplo, com um branco maconheiro da Vila Madalena ou Pinheiros. Entre os motivos, a classe social: negros dependem mais de órgãos como a Defensoria Pública e tendem a ter menor número de testemunhas – daí a quantidade absurda de pessoas que são condenadas com base em reconhecimento por foto ou ou que seguem presas mesmo sem ter tido julgamento.
DERRUBEM AS PRISÕES
Se o sistema prisional é uma máquina de moer a carne mais barata do mercado, de onde podemos partir? Uma das alternativas é o Abolicionismo Penal, movimento que aponta as diversas falhas dos sistemas penais modernos e busca alternativas mais eficientes e humanas para ressocializar infratores.
É sabido que sugerir a abolição das prisões como remédio para a violência pode assustar os mais desavisados. Porém, o quão assustador são cenas como as de Jacarezinho ou de pessoas em celas superlotadas, com acesso precário à higiene e saúde, se alimentando de comida vencida e sob a ameaça constante de sofrer violência física, sexual e psicológica?
Foi com os olhos voltados a essa questão que designer Sarah Caos criou o grupo de estudos “Abolicionismo Penal Sem Juridiquês”, que reúne pessoas de origem periférica e das mais diversas áreas de atuação profissional para debater o quão nefasto é o sistema prisional. Os encontros acontecem quinzenalmente via videochamadas.
A bibliografia utilizada no grupo conta com títulos de Juliana Borges, Angela Davis, Achille Mbembe e Silvio de Almeida e referências populares, como o álbum Justiça Socials do sambista Bezerra da Silva, e Sobrevivendo ao Inferno, dos Racionais MCs, e o filme Infiltrado na Klan, do diretor americano Spike Lee.
Sarah explica que o propósito da metodologia é justamente fugir da academia para que o público consiga associar a teoria abolicionista com a realidade das periferias brasileiras. Inclusive, ela afirma que a linguagem jurídica é elitista e foi tecida de forma rebuscada para manter a periferia fora da discussão.
Nascida e criada na zona leste de São Paulo, Sarah afirma que o processo histórico de marginalização do funk, do rap, do samba e do pixo, entre outras manifestações de origem negra ao longo da história brasileira, integra um projeto de extermínio. Dessa forma, o grupo de estudos cria pontes para ajudar a quebrada a entender os meandros do sistema e, a partir daí, propor transformações radicais na sociedade.
Designer gráfico, ilustradora e colagista, foi há apenas dois anos que Sarah conheceu as teorias abolicionistas. Autodidata, ela se jogou nos estudos e mergulhou mas obras dos teóricos europeus Thomas Mathiesen, Nils Christie e Louk Hulsman, que popularizaram o movimento de abolicionismo penal em países escandinavos na segunda metade do século 20.
Hoje, Sarah concilia os trabalhos de design com as atividades do grupo de estudos e segue firme no propósito de fomentar redes de apoio e luta de forma coletiva e organizada.
IMAGEM DE ABERTURA: Cia das Terroristas.