*Reportagem de João Paulo Rodrigues, aluno do curso de Jornalismo Ágil da Emerge Mag.
No ponto mais alto da cidade de São Paulo está a menor demarcação indígena do Brasil: a Terra Indígena Jaraguá. Com 600 habitantes, da etnia Guarani Mbya, são seis aldeias num espaço de 17 mil metros quadrados, mais ou menos dois quarteirões de um bairro tradicional. Homologada em 1987, a área faz parte do bairro periférico e operário Jaraguá, com 400 mil habitantes – os “juruás”, como os indígenas chamam as pessoas de fora da aldeia.
Filha de mãe indígena e pai juruá, Sthephanie Rafaela Ara Poty da Silva vive na terra indígena. Antes da pandemia, a jovem de 17 anos era jogadora do time de futebol Xondarias Guarani (Guerreiras Guarani, em tradução literal do Tupi). Com 1,61m e 60 quilos, números altos frente a média das demais jogadoras, Rafaela era zagueira quando o Xondarias disputou a Copa das Favelas, campeonato de futebol amador de São Paulo. Logo na estreia, a equipe perdeu de 7×1, e não se classificou para a fase de eliminatórias.
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O historiador, juruá, Rodrigo Benevuto é o treinador do Xondarias. Além de coordenar a rotina de treinos e inscrever a equipe em competições, ele é responsável por captar recursos e equipamentos para as atletas. E não acaba por aí. Em dia de jogo, Rodrigo fica com um olho na bola e outro no banco de reservas. A atenção compartilhada se dá porque o banco também serve de creche para os filhos pequenos das jogadoras. “Acabo fazendo o papel de babá”, diz Rodrigo, aos risos.
A relação de Rodrigo com a terra indígena começou por causa do Salve Kebrada, coletivo que pesquisa, registra e divulga a história do bairro Jaraguá e realiza ações de integração entre moradores. Fundador do coletivo, ele conta que a região é uma fonte inesgotável de histórias de resistência.
“Os indígenas e os não indígenas do bairro Jaraguá têm em comum a luta pelo direto a moradia”
RODRIGO BENEVUTO, HISTORIADOR
De acordo com Rodrigo, a região do Jaraguá tem sido ameaçada por obras da construtora Tenda nos últimos anos. “Em 2020, ao comprar um lote de terra ao lado da demarcação indígena, a empresa derrubou mata nativa”, diz.
Na época, os guaranis ocuparam o espaço e replantaram 800 mudas. Posteriormente, indígenas e lideranças juruás conseguiram impedir a continuação do empreendimento na Justiça. No momento, o território segue em disputa.
PANDEMIA E EMPREGO
Ser morador de bairros descentralizados já é um ato de resistência. Agora, coloque na equação ser indígena e, mesmo numa terra demarcada há 30 anos, estar em situação de vulnerabilidade social, com pouco acesso a alimentação e saneamento.
Quando a Emerge conversou com Rafaela, em abril de 2021, a maior parte dos jovens da Terra Indígena Jaraguá permaneciam isolados para evitar a contaminação por Covid-19. A taxa de vacinação dos moradores é de 80%, uma vez que os indígenas foi um dos grupos prioritários.
Ela explica que, na aldeia, a necessidade de um é a necessidade de todos. Um exemplo é o compartilhamento de tabaco, que fica armazenado numa caixa de uso comum. O mesmo ocorre com a alimentação, parte oriunda de doações.
Poucos indígenas do Jaraguá têm empregos formais – situação comum em aldeias urbanas. Segundo dados do CAGED, foram contratados 3.094 profissionais indígenas em 2020, um crescimento de 48% em relação a 2018.
No entanto, quando analisado o total de empregos gerados, os indígenas representaram apenas 2,16% das contratações. Na Terra Indígena Jaraguá, Rafaela é uma das poucas com emprego. Ela trabalha na Associação Paulista de Desenvolvimento da Medicina. Fundada em 1933, a entidade filantrópica atua em saúde e educação e é responsável por gerir hospitais públicos em territórios periféricos.
Antes da pandemia, a principal fonte de renda dos aldeados eram trabalhos informais e a venda de artesanatos em bairros centrais. Com as medidas de restrição de circulação, os guaranis da selva de pedra viram sua renda despencar.
UMA NOVA AMEAÇA
Enquanto esta reportagem estava sendo desenvolvida, a equipe da Emerge foi comunicada que a situação na aldeia estava tensa. Motivo: a aprovação do Projeto de Lei 490, pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, em Brasília. O PL prevê mudanças drásticas na demarcação de terras indígenas e relacionamento com povos isolados. Uma das alterações é a transferência do poder de demarcação para o Congresso – hoje, a responsabilidade é da União. Na prática, a transferência permitirá aos deputados alterar demarcações já homologadas, mudar os critérios de solicitação de novas demarcações e, ainda, facilitar a exploração de recursos minerais nos territórios.
Outro ponto nefasto do PL é a criação de um Marco Temporal, que considerada terra indígena apenas aquelas ocupadas pelos povos originários antes de 5 de outubro de 1988, data da promulgação da última Constituição Federal. Caso o projeto seja sancionado, novos pedidos de demarcação e a ampliação de áreas existentes serão proibidos. O tema é tão complexo que o Marco Temporal tem sido analisado, separadamente, no Supremo Tribunal Federal (STF).
Logo que souberam das tramitações na capital federal, os guaranis do Jaraguá iniciaram protestos semanais, inclusive com bloqueios na rodovia Regis Bittencourt, que liga São Paulo a Santa Catarina. Nos últimos dias, os protestos em São Paulo diminuíram em intensidade. Porém, em Brasília, grupos de diferentes etnias ainda ocupam a Praça dos Três Poderes.
ATUALIZAÇÃO 18/4/2024: Em 14 de dezembro de 2023, o Congresso Nacional promulgou a Lei 14.701/23, mesmo após inconstitucionalidade determinada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em setembro. No dia 11 de março de 2024, a Procuradoria Geral da República, enviou um parecer ao STF no qual defende a derrubada do Marco Temporal. O tema será analisado novamente pelos ministros da corte ainda em 2024.
IMAGENS: Salve Kebrada e Nu Abe (as fotos foram feitas antes da pandemia).