Otávio* é um homem de 50 e poucos anos, casado com uma mulher há mais de duas décadas, pai de jovens adultos e trabalhador urbano de classe média. E Otávio tem um hábito: sempre que está sozinho em casa, assiste pornografia gay. Solitário entre seus desejos, não tem amigos para compartilhar seus sentimentos. Para ele, a sexualidade – e as situações em que se colocava para escondê-la – era sinônimo de angústia.
Agora, não é mais. Nos últimos meses, Otávio tem participado de um grupo online que reúne homens de diferentes idades, personalidades, territórios e orientação sexual, brancos e negros, para discutir sobre masculinidades: a forma de ser e se expressar como homens na sociedade.
Uma vez que as características tidas como “de homem”, como não demonstrar sentimentos, nos foram ensinadas desde a infância, o desafio que se coloca para os homens contemporâneos é compreender por que mantemos padrões que são nocivos para nós e para as pessoas a nossa volta.
E a provocação contra nós mesmo não para por aí. Precisamos acolher as sensações que permeiam esses comportamentos. Quando e porque sinto medo, raiva, tédio ou tristeza? Sabendo a resposta e prevendo cenários, fica mais fácil cessar padrões violentos e aprender comportamentos mais saudáveis, por meio da repetição de pensamentos, falas e atitudes.
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Vale lembrar que masculinidade é diferente de masculinidade tóxica. Masculinidade é o conjunto de comportamentos, reações e respostas que são reforçadas de acordo com as práticas culturais aos que se identificam como homens. Já a masculinidade tóxica é um modelo de reprodução de masculinidade que não permite diálogo, afeto ou demonstração de fraqueza #machismo.
Fundado em maio de 2020, no Rio de Janeiro, o Desvio é uma comunidade feita de homens para homens. É um espaço de conexões, acolhedor e seguro, para eles debaterem masculinidades a partir de experiências pessoais. Embora haja a tendência de evitar julgamentos, não se passa pano para machismo – inclusive, um dos objetivos é fazer com que os homens abandonem a masculinidade tóxica.
Hoje, o Desvio possui 125 membros ativos, que se reúnem ao menos uma vez por semana. Os participantes podem participar de sessões livres e de encontros de comunidades temáticas. As principais são parentalidade, redução de consumo de pornografia, masculinidade preta e homens LGBT. Já houve mais de 60 encontros, online e presenciais.
MENOS TABU, MAIS AÇÃO
De acordo com Tadeu Macedo, 27 anos, fundador do Desvio, os participantes têm em comum a angústia de não terem espaços em que possam falar sobre suas vulnerabilidades, ao mesmo tempo que ouvem outros homens falando sobre sentimentos semelhantes.
A dinâmica dos encontros é bem simples. O custo para participar é de R$ 160 por semestre. O encontro começa com o facilitador explicando os acordos de convivência: é para ser reflexivo e respeitoso. É apresentado o tema do dia, com fatos e dados de contextualização. Na sequência, os participantes falam um a um sobre suas experiências e fazem comentários transversais. No final, o grupo define uma ação prática relacionada ao tema, que deverá ser implementada por todos até o próximo encontro.
No encontro com o tema “praticar a equidade de gênero no dia a dia”, a ação definida foi refletir e agir sobre a participação em tarefas domésticas e conversar com as mulheres próximas sobre quais outras atitudes poderiam ser melhoradas.
Importante lembrar que grupos como o Desvio não substituem tratamentos psicológico e psiquiátrico – o coletivo possui parceria com profissionais de saúde mental para realizar atendimentos individuais. Os encontros de masculinidades também não são aulas ou workshops. É, de fato, um grupo de escuta ativa, acolhimento e suporte.
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O MACHISMO MATA ELAS E ELES
De acordo com uma pesquisa do Observatório da Mulher Contra Violência (OMV), 62% das brasileiras considera o país muito machista. A percepção é maior no Rio de Janeiro (73%), Pernambuco (72%) e Distrito Federal (69%). Em São Paulo, a média é levemente menor (59%).
Dizer que o machismo mata mulheres é redundante. Em 2023, houve recorde de feminicídio no Brasil. Foram 1.463 casos – 1 a cada 6 horas. De 2015, quando a foi criada a lei contra feminicídio, até o ano passado, quase 10,7 mil mulheres foram vítimas.
Acontece que o machismo também mata os homens. Estudos científicos conduzidos pelos pesquisadores em saúde mental e gênero Valeska Zanello e Felipe de Baére apontam a masculinidade como um dos principais fatores de adoecimento psíquico para os brasileiros.
Inclusive, comportamentos frutos de uma cultura machista, como mais dificuldade em pedir ou aceitar ajuda e apreço por armas de fogo, faz com que os homens morram mais por suicídio.
E o desastre começa desde a infância. Segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria, baseada em registros do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, o Brasil registrou 9.954 casos de suicídio ou morte por lesões autoprovocadas intencionalmente, entre 2012 e 2021. A maioria dos casos acontece entre pessoas de 15 a 19 anos (84,29%) e homens (68,32%).
*Nome fictício para não identificar a fonte.