O melhor de Ame Apolinário em sua própria revolução

18/04/2019

Estilista da Cemfreio faz sua estreia na música com Melhor de Mim, que tem como pilares moda, música e design num viés subversivo

Quem é fã da Cemfreio, marca de moda fundada em 2016, que rompeu padrões estéticos ao criar roupas com materiais e modelagens inovadores, agora vai poder experimentar uma parte mais pessoal da arte do criador Ame Apolinário.

Diferente da moda, que é consumida de uma forma singular por cada um, a música pop, na qual Apolinário se jogou, representa uma forma de documentar seus sentimentos temporais – mostrar seu universo.

“Quer entender um pouco da minha dimensão?”, questiona ele. “Senta aí, pega seus bagulho e troca uma ideia comigo”.

Não é à toa que Melhor de Mim – e as futuras músicas que serão lançadas – vieram de poemas que Apolinário escreveu ao longo dos anos. Ele também participou de todas as etapas de criação das faixas, da produção à finalização.

Manter as músicas sob suas asas acabou sendo um verdadeiro processo de autoconhecimento. Com uma sonoridade e qualidade musical que se assemelha (e que não se via) desde Azealia Banks, no EP 1991, Melhor de Mim é um pop deep house, que não se vende ao comercial.

Não virar um produto é causa e consequência, musical e lírica. Assim, ele pode transitar livremente por um mar de referências, que vão de Solange até Pixinguinha.

“Primeiramente, Melhor de Mim tinha sido finalizada como um funk 150bpm, mas o resultado final não comunicava da forma necessária. Não achei justo uma música que impulsiona viado a fazer viadagem não ter um bate cabelo, um dancehall, um vogue, elementos que fazem parte da musicalidade das gays do Brasil. Inclusive, me sinto mais brasileiro fazendo música, já que é uma expressão tão intrínseca ao país”


A NOVA CENA

APOLINÁRIO: POEMAS AUTORAIS SE TORNARAM MÚSICAS

Apolinário não chega sozinho com sua música verdadeira, que foge da mercantilização cultural e fomenta o cérebro do brasileiro – tudo sem precisar “pagar pau” para artistas estrangeiros.

Artistas como Linn da Quebrada, Lay (que recentemente apareceu na Emerge), Mia Badgyal e muitos outros estão compondo uma nova cena musical, principalmente em São Paulo.

Para Apolinário, esse cenário tem que se fortificar cada vez mais.

Para isso, ele procura coexistir com todas essas outras artistas que estão dando uma nova cara ao cenário musical brasileiro.

Badgyal, por exemplo é uma de suas parceiras. A drag produz PC Music com tons do gênero brega, mostrando que o brasileiro se sai muito bem quando o assunto é criar o novo.

Mia foi de grande ajuda para Apolinário. Ela deu conselhos para que os pessoais poemas dele fossem se moldando para se tornar a música. Também entra nessa tarefa o pessoal da gravadora Artefato.

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A ideia de que uma mão lava a outra faz parte do objetivo de criar círculos, famílias que se apoiam, independente da luta de cada um.

Ele comenta que muitas pessoas que trabalharam com ele desde o início da Cemfreio ajudaram na criação de Melhor de Mim. Por exemplo, a arte da capa do single foi feita por Erick Costa.

“Vejo a necessidade de criar uma ponte de tijolos baianos de ouro, o que já estamos fazendo, que permita um caminho para novas pessoas e novas performances. Ao pluralizarmos as brisas e coexistências, vamos juntos para o spotlight

APOLINÁRIO APRENDEU A TOCAR BATERIA NA IGREJA PENTECOSTAL, TEVE UM BLOG DE MÚSICA E TRABALHOU PARA A HERING E BOX 1824

O MELHOR DE MIM

Para Apolinário o melhor dele é, primeiramente, ser honesto consigo mesmo e não se importar com o que os outros vão achar. Ser uma gay, preta, periférica que escolhe fazer o que quer fazer. E, depois, ser o melhor no que faz, independente do que está criando.

Desde janeiro, ele pratica aulas de canto e piano. A ideia é mergulhar profundamente na música para viver intensamente e progredir nessa arte.

Para entender melhor essa característica do artista, voltamos aos seus 14 anos de idade: na época, ele tinha um blog dedicado à música. Antes, aprendeu a tocar bateria na Igreja Pentecostal.

Aos 18, trabalhou na Hering, onde teve contato com moda ao comandar uma equipe de visual merchandising.

Logo depois, passou a fazer pesquisa de tendência para a consultoria Box 1824, sendo o mais jovem da equipe.

Tudo isso fez com que ele entendesse que um cérebro dedicado pode realizar qualquer função.

A partir disso, ele decidiu fazer moda. Logo de cara, estourou. Em 2016, fez sua estreia na Casa dos Criadores. O desfile teve como tema central o colorismo, a variação de discriminação de acordo com a pigmentação mais escura da pele.

CEM FREIO DURANTE A 40ª CASA DE CRIADORES (Foto: Alexandre Schneider/Fotosite)

Na época, ele explicou: “é o caso do pardo, por exemplo, que é preto. Só que muitas vezes o acesso de uma pessoa pode variar se ela tiver uma pele muito mais escura do que uma outra mana com uma tonalidade negra mais clara.”

O estilista, então, escolheu um casting apenas de modelos negros, com várias tonalidades de cor de pele.

Ainda em 2017, ele encerrou o São Paulo Fashion Week num desfile aberto. O mote foi Toda Beleza Pode Ser. Dessa vez, o casting contou com modelos gordas, magras, deficientes físicos, negros, brancos e pessoas curadas de câncer.

A Cemfreio também já fez desfiles com show da Pabllo Vittar na passarela e assinou figurinos para artistas como Gloria Groove e Don L.

Ano passado, Apolinário teve outra ideia: criar o Sou Preto Fashion Week. A ideia é gritar por autonomia criativa. Numa entrevista para a Revista Fórum, ele disparou “cansei de lutar pelo acúmulo, só quero se tiver retorno, só quero se for centro preto. Orquestra de aliados e maestria de bambas. Quero ser o sonho de crianças”.

MÚLTIPLAS EXPRESSÕES

Atualmente, Apolinário mantém um estúdio de criação no Centro Complexo, espaço no centro de São Paulo, onde ele ministra aulas de modelagem, discotecagem e outras oficinas.

Em breve, as peças da Cemfreio estarão expostas no local. Hoje, as roupas podem ser compradas na Loja Nó, também no centro, ou no e-commerce da Cem Freio.

FALSAS REPRESENTATIVIDADES SERVEM PARA DAR “NOVA ROUPAGEM” AO PODER VIGENTE

O Centro Complexo faz parte da vida política de Apolinário. O objetivo é ajudar a sociedade ensinando e resistindo.

Foi nesse âmbito que ele teve a necessidade de fazer uma celebração do que sente, de suas necessidades pessoais, de seus prazeres e de seus desejos. Assim, nasceu a música Melhor de Mim.

Nessa trajetória, Apolinário chegou ao apogeu de unir três pilares para a sua própria revolução: moda, música e design.

Atualmente, a moda unida com a performance é um tema rotineiro justamente por trazer mensagem e conceito subversivos – e não apenas vestuário.

Isaac Silva, Brechó Replay, Rober Dognani, Diego Gama e Ken-Gá são algumas marcas que na última Casa de Criadores trouxeram desfiles que vão muito além de roupas e modelos na passarela. É o fator social da moda.

“É necessário entender que moda, música e comportamento são um conjunto de informações que ocupam o mesmo espaço. A sobreposição de diversas técnicas e camadas é o que faz sair do consumo e parar de ser um produto em uma prateleira”

MENSAGEM E AMBIÇÕES

Melhor de Mim vem para Apolinário como uma forma de exaltar a vida das gays, celebrar da melhor maneira cada dia que não morremos voltando para casa.

A música retrata também um desejo, tabu, e todas as questões que percorrem o bareback, a penetração “no pelo” (sem camisinha).

A ideia é não esconder a vida em letras genéricas apenas para ser mais um hit. Neste contexto que Apolinário vê a importância de colocar no cerne questões verdadeiramente do nosso cotidiano.

De acordo com o Boletim Epidemiológico HIV Aids de 2018, divulgado pelo Ministério da Saúde, houve aumento de cerca de 700% em casos de HIV entre jovens de 15 a 24 anos de 2007 para 2017.

Em São Paulo, foi quantificado uma média de 88,3 novas infecções a cada 100 mil habitantes de 20 a 24 anos, somente em 2017.

Por trás do crescimento está o moralismo e o conservadorismo que tendem a silenciar campanhas de conscientização. Não falar do assunto gera baixo acesso à informação – um agravante em um Brasil que não debate educação sexual nas escolas, por exemplo.

Apolinário é um artista pop que quer adentrar em espaços em que não se discute essas questões, não se limitando ao público LGBTQ+, uma vez que a população heterossexual também é suscetível ao HIV.

Colocar a cara no sol é ir além de militar nas redes sociais. É ser raivosa também fora de casa.

CARA NO SOL: MILITÂNCIA PRECISA SER ALÉM DAS REDES SOCIAIS

Apolinário analisa que a contracultura adentrou na cultura com a intenção de acabar com o capitalismo por dentro, mas, infelizmente, isso tem retroalimentado o capitalismo.

Explicando: A assimilação das dissidências, por meio de falsas representatividades, tem sido utilizada para impulsionar e dar “nova roupagem” ao poder econômico vigente.

Para ele, é necessário começar a pensar em um novo método de convívio social para implodir o capitalismo. Caso contrário, faremos uma manutenção desse sistema.

Uma ideia que ele tem é utilizar do conhecimento empírico das pessoas que se viraram a vida toda para sobreviver e dar a volta por cima nos opressores. Ele cita, por exemplo, os traficantes de drogas.

Ele relembra também o tweet que mostra um europeu no Brasil que comprou uma camiseta de uniforme de uma escola pública, no Rio de Janeiro, por um preço altíssimo.

“É sobre isso, vamos reivindicar o que é nosso e exigir o nosso preço”, afirma.

Apolinário termina dizendo que, em 2019, ele está em uma fase de terminar coisas, entender seus máximos e mínimos e, principalmente, reescrever seu histórico – e dar o seu melhor.

IMAGENS: João Grijo, com edição de Rogério Henrique.

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Revista digital de cultura, direitos humanos e economia criativa interseccional e consultoria de diversidade e impacto social (ESG).

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