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Moda circular: o reuso sustentável dos brechós

10/10/2022

Quarta reportagem da série Emerge Potências da Moda aborda curadoria e reutilização com Acervo das Anjas e Brechó Itinerante.

Três mulheres com realidades, personalidades e sonhos diferentes. É assim que se definem Márcia dos Anjos, 41 anos, Lívia Anjos, 32, e Heleonora Pinheiro, 31.

A primeira é natural da Bahia, criada no Capão Redondo, em São Paulo, e mora há mais de 10 anos em Paris, além de ser graduada em pedagogia e administração e mãe de duas crianças. A segunda é educadora com enorme interesse em estética, fotografia e música. A terceira é formada em design de moda e atua como produtora e stylist, e transita pelo universo da arte e da fotografia.

O que as unem? Além da ancestralidade, a paixão pela moda sustentável e circular. Em 2017, elas criaram o Acervo das Anjas.

O negócio criativo é um brechó e loja colaborativa com foco em três perfis de público: comunidade LGBTQIA+ preta e indígena; pessoas de 25 a 40 anos com estilo alternativo, casual, criativo e urbano; e mulheres entre 45 e 60 anos, que desejam peças clássicas, elegantes e românticas. Além da unidade comercial, o negócio presta serviço de produção e styling de moda e consultoria de imagem.

LÍVIA ANJOS, COFUNDADORA DO ACERVO DAS ANJAS: brechó é sobre sustentabilidade socioambiental (Foto: Rafael Felix)

Um dos diferenciais do Acervo das Anjas é o acervo com peças garimpadas no Brasil e na França. Há desde itens básicos de vestuário, vestidos e casacos até bolsas, joias e obras de arte. Há diversidade de peças sem gênero e para corpos fora do padrão numérico.

A curadoria que atravessa o Atlântico tem atraído artistas independentes da moda, música e arte, que utilizam o acervo para produções editoriais e audiovisuais, num sistema de cobranding.

As criativas destacam que o modelo de negócio, por si só, é uma prática de sustentabilidade socioambiental. A ideia é ir na contramão da lógica de produção desenfreada do fast fashion, que gera toneladas de roupas que são descartadas após pouco tempo de uso.

“O brechó incentiva a reflexão sobre consumo e relação com as roupas. Vendemos peças para as pessoas se sentirem bem consigo mesmas, o que aumenta o ciclo de vida dos produtos”

Márcia dos Anjos, fundadora do Acervo das Anja

Quando a consumidora achar que a roupa já não combina mais com seu estilo ou não expressa a sua identidade, o Acervo das Anjas incentiva a troca entre elas e a doação das peças que ainda estiverem em bom estado de conservação.

Hoje, o Acervo das Anjas possui um ateliê próprio na Barra Funda, zona oeste da capital de São Paulo, que recebe clientes via agendamento. A marca também faz vendas via Instagram e Whatsapp e participa de festas e feiras de produtos criativos.

Um dos últimos eventos foi a feira de empreendedores da Nhaí, empresa de tecnologia de inovação e projetos de diversidade fundada por Raquel Virgínia, mulher, trans e preta ex-cantora da banda As Baías e a Cozinha Mineira.

“O Acervo das Anjas é um negócio de moda — e de cuidado e acolhimento, conexões e compartilhamento. Criamos relações, seja de venda, criação ou bate papos, o que amplia as nossas redes”

Lívia Anjos, fundadora do Acervo das Anjas
HELEONORA PINHEIRO, COFUNDADORA DO ACERVO DAS ANJAS: negócio criativo incentiva trocas e doações entre as próprias consumidoras (Foto: Rafael Felix)

LEIA TAMBÉM: Impacto socioambiental: a moda sustentável de mulheres negras

MODA CIRCULAR

Economia circular é um conceito que associa desenvolvimento econômico a um melhor uso de recursos naturais. O lance é baseado em novos modelos de negócios e na otimização dos processos de fabricação, com menor dependência de matéria-prima virgem, priorizando insumos mais duráveis, recicláveis e renováveis.

Brechó é um ótimo exemplo de economia circular. Entre os benefícios do modelo se destacam: menor impacto ambiental e exploração de mão de obra, típicos da indústria de moda; movimentação da economia local e reutilização de roupas que poderiam se tornar resíduos.

Por exemplo, quem se lembra das chocantes imagens que circulou pela internet ano passado, que mostraram um lixão de roupas no Deserto do Atacama, no Chile? Sapatos, camisetas, casacos, vestidos e outras peças formavam um gigante cemitério têxtil. O local recebia, anualmente, cerca de 40 mil toneladas de roupas descartadas pelos Estados Unidos, Europa e Ásia — um clássico exemplo de racismo ambiental global.

Outro fator é que garimpar roupas usadas favorece a expressão de identidades entre os consumidores, que não ficam reféns da efemeridade de estilos sazonais criados pelo Fast Fashion.

Nos últimos anos, tanto grandes empresas de moda quanto os consumidores estão abrindo os olhos para os benefícios da reutilização de produtos de moda. Stella McCartney, Gucci e Burberry tem investido no mercado de segunda mão por meio de parcerias com lojas online de revenda de roupas usadas.

Outro exemplo foi a aquisição pela Farfetch do marketplace de revenda Luxclusif. A transação deu início Farfetch Second Life, plataforma de tecnologia e serviços de revenda de artigos de luxo.

De acordo com um recente relatório da Thredup, uma das principais lojas online de revenda e consignação de moda dos Estados Unidos, o mercado global de roupas usadas faturou 96 bilhões de dólares em 2021, com expectativa de crescimento de 127% até 2026. O mercado sulamericano deverá crescer quatro vezes no período, o dobro da média europeia.

O mesmo estudou apontou que 62% da Geração Z e dos Millenials afirmam procurar item de segunda mão antes de comprar um novo. Entre os consultados, 72% dos consumidores de brechós dizem que sentem orgulhosos de compartilhar com os outros que sua roupa é de segunda mão. O posicionamento reflete preocupação ambiental dos jovens.

HELEONORA E LÍVIA: garimpar peças é expressão de identidade (Foto: Rafael Felix)

VEJA MAIS: Efervescência e diversidade: a moda de São Paulo também é nordestina

CORPES DISSIDENTES RESIGNIFICA O LIXO

Parte significativa des empreendedores mapeades pelo projeto Emerges Potências da Moda são pessoas LGBTQIA+. Entre elus está Camil Cantore, fundadore do Brechó Itinerante, de acervo vintage – tudo sem origem animal. O negócio criativo preza por resgatar a história das peças e como foram produzidas. A principal referência artista e ideológica de Camil é Efigênia Rolim, artista plástica e poeta que desenvolve obras e vestuário a partir de itens que encontra no lixo.

“Produzo roupas e acessórios a partir do lixo. Objetos e insumos descartados são matérias-primas valiosas”

Camil Cantore, fundadore do Brechó Itinerante

Em 2022, o Brechó Itinerante passou por uma residência artística na Casa Elke, espaço autônomo e colaborativo de oxigenação cultural na zona central de São Paulo, idealizado pelos mesmos criadores do Coletivo Cabeças (perfilado pela Emerge em 2020). Foi lá que rolou o último desfile da marca, somente com modelos trans. Antes, o Brechó Itinerante realizou um desfile na Casa de Criadores, em parceria com a estilista Vicenta Perrota.

Falando em corporeidades trans, o Brechó Itinerante fornece peças, sem custos, para serem usadas por criatives da comunidade em editoriais, desfiles e produções audiovisuais. “É uma rede que alavanca acesso a vestimentas para projetos criativos”, diz Camil.

Uma vez que trouxemos Efigênia Rolim à reportagem, deixarei que ela termine este texto: “vitrine, joias de ouro? Eu virei prum outro lado. Descobri o meu tesouro foi no lixo reciclado”.

SEDE DO ACERVO DAS ANJOS É NA CASA DE LÍVIA, NA BARRA FUNDA, ZONA OESTE DE SÃO PAULO (Foto: Rafael Felix)

FOTOGRAFIAS: Rafael Felix e Kalinca Maki
BELEZA E MAQUIAGEM: Kali Beauty
DESIGN DE CABELOS: Ágata Santos e Quelare Cristina
ACESSÓRIOS: Ojire Art


Emerge Potências da Moda

Emerge Potências da Moda é uma profunda investigação de negócios emergentes de moda da cidade de São Paulo, com foco em lideranças de periferias, LGBTQIA+, negros, mulheres, indígenas urbanos e pessoas com deficiência. Além da série de reportagens, integram o projeto pesquisas quantitativa e qualitativa, debates interativos e relatório de insights.

Projeto contemplado na chamada aberta RE-FARM CRIA, uma iniciativa do Instituto Precisa Ser + Farm. Por meio de patrocínio, o programa apoia o desenvolvimento de projetos e ações de coletivos, organizações sem fins lucrativos e pessoas físicas em capitais do Brasil e territórios periféricos do Rio de Janeiro.

O projeto conta com apoio da indústria de aviamentos Ludan Franjas, da produtora de vídeos e fotografias In.Par e du maquiadore Kali Beauty.

Outras reportagens da série:

Tendências, demandas e potências da moda emergente paulistana

Conheça a CëJuntos, marca de roupas tamanho único, e a Dume, consultoria estratégica para negócios criativos.

Efervescência e diversidade: a moda de São Paulo também é nordestina

A criatividade e inovação da marca de moda praia e urbana CM Brand e da Berimbau Brasil, de inspiração afro-indígena.

Impacto socioambiental: a moda sustentável de mulheres negras

A Az Marias cria roupas com resíduos têxteis e a Da Lama desenvolve peças artesanais para mulheres de periferias.

Liderança feminina e produtos artesanais na moda da Ludan Franjas

A pequena indústria de aviamentos Ludan Franjas aumentou as vendas com linhas de produtos feitos à mão.

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