*Este texto contém linguagem neutra de gêneros gramaticais
As novelas, revistas e narrativas da Disney bombardearam as nossas mentes para acreditarmos que pessoas bonitas devem ser brancas, magras, altas e loiras – e cisheteronormativas. Apesar da crescente discussão sobre real beleza, essa cristalização imagética ainda perdura (basta fazer o teste de pesquisar no Google “pessoas bonitas” e conferir os resultados). Porém, aqui pertinho de nós e na contramão do padrão colonizador (olha que mara), existem três coletivos parceires que compartilham integrantes, aspirações e um espaço físico de arte e cultura: o Coletivo Cabeças, especializado em cortes de cabelo, barba e coloração; o Brechó Itinerante, que vende roupas e artigos de decoração; e o Sart, voltado a corte e costura e criação de figurinos e loucuras para teatro.
Por si só, a sede dos coletivos já enche os olhos de quem visita a casinha amarela na Rua Itararé, 158, no centro de São Paulo. Há araras cheias de roupas dividindo o espaço com plantas, manequins, placas, móveis e… cadeiras de cabeleireiro. Por incrível que pareça, uma das únicas coisas que você não vai encontrar lá é um espelho. Xole Senso, cofundador do Coletivo Cabeças, explica:
“Arriscamos construir beleza sem espelhos, estética sem padrões y público sem placa na porta. Apostamos no genuíno. Não sabíamos se as pessoas topariam viver isso, se estavam dispostas a confrontar o confortável. Por fim, o que era nossa insegurança, tornou-se nosso atrativo”
Muito mais do que deixar o seu pikumã lindo e fazer você arrasar no look da baladinha (virtual, por enquanto), o desafio do coletivo vai além de atrair um público consumidor e seguimores. A potência vem de ser um espaço seguro, de acolhimento e escuta, onde as pessoas frequentem por identificação e desejo. Além de Xole, integram o coletivo Ana Elisa Cunha, Bruna Sartini, Camil Machado, Tete Sartini e Zahra Alencar (veja quem é quem na galeria abaixo). Com a união de forças e expertises, elus fomentam arte e cultura de (e para) dissidências e fazem uma leitura interseccional dessa ficção chamada de realidade.
“Os processos de trabalho, interesses y atuações são discutidos y votados em grupo, ouvindo o posicionamento de todes, garantindo opiniões de fogo, de terra, de ar e de água”, diz o coletivo.
POLITIZAÇÃO DA ESTÉTICA
A saga de corte de cabelos, de tecidos e de normas teve início por volta de 2012, quando es fundadores se conheceram numa sala comercial no centro de são Paulo. Em comum, compartilhavam reflexões sobre a beleza como instrumento de opressão, a superficialização da moda e a precarização do trabalho coletivo. Com tesouras nas mãos e ideias na mente, nascia o Coletivo Cabeças.
Inicialmente, os trabalhos eram feitos de forma itinerante. Elus levavam as instalações, criavam cenários e, nas ruas, vendiam vestimentas babadeiras e faziam cortes de cabelo #ousados. Com a boa receptividade do público, o coletivo começou a realizar performances em locais carimbados da cidade, como Viaduto do Chá, Casa das Caldeiras e Memorial da América Latina.
Sabe aquele lance de moldamos o meio ao mesmo tempo que o meio nos molda? Então, por ser formade por pessoas trans/não-binárias e mulheres cis, uma das preocupações era a segurança para existir na rua, um espaço não muito acolhedor para corpes que fogem da normatividade. Na busca para (r)existir, o coletivo criou o espaço físico da rua Itararé. Lá as portas ficam abertas para existências LGBTQIAP+, com destaque para a população trans, com uma agenda que engloba saraus, debates e eventos de música e gastronomia (a programação cultural continua paralisada devido a pandemia). O coletivo também realiza ações nos arredores, como arrecadação de doações e cortes de cabelo para pessoas em situação de rua na Baixada do Glicério e na Casa Don Orione Bela Vista.
Com a firma aberta, o coletivo passou a atuar em produção audiovisual, apresentações e rodas de conversa em unidades do SESC; beleza para desfiles de moda, como o de Vicenta Perrota na 44ª Casa de Criadores; e fez uma exposição na Suíça, em que ume des integrantes apresentou, em terras colonizadoras, uma escultura produzida com cabelos de fregueses e de pessoas do coletivo, formando uma “carranca” para espantar o mau- olhado.
Um dos episódios mais emblemáticos, no entanto, aconteceu durante um evento em uma galeria de arte em São Paulo em 2019. Respeitando os trâmites, o coletivo enviou uma prévia da performance que apresentaria, e que foi autorizado pelo espaço. Xole conta que, ao chegarem no local, a presença delus pareceu ter causado insegurança na normatividade (o que acontece bastante). A partir disso, a produção desautorizou a performance com cabelos no chão. Aí rolou um “diz que me diz” via rádio e diversas tentativas e negativas. Como a arte não precisa da validação de instituições para acontecer, o coletivo afirmou, então, que faria a performance na rua. Houve mais uma negativa sem noção, uma vez que uma organização privada não deve ter controle sobre ocupações em vias públicas. No final, a produção se redimiu e permitiu a realização da performance dentro da galeria. Para o grupo, a situação foi mais uma das muitas tentativas da normatividade de impedir a existência de outres corpes e provou que gerar conflitos é necessário. Elus passam o panorama:
“Uma artista que gostamos muito, chamada Diran Castro, nos ensinou que pessoas como nós têm que cavar acessos. Nada até aqui foi feito sem luta, y precisamos tomar o que é nosso. Quando atuamos em comunidades cisnormativas, nosso impacto é de infiltração”
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VISIONÁRIES NA PANDEMIA
A pandemia de coronavírus afetou o funcionamento de 5,3 milhões de pequenas empresas no Brasil, o que equivale a 31% do total. Outras 10,1 milhões (58,9%) interromperam as atividades temporariamente, segundo uma pesquisa realizada pelo Sebrae em abril deste ano. O mesmo levantamento, feito em junho, mostrou que 59% das pequenas empresas mudaram o seu funcionamento e 4% fecharam de vez. Quem oferecia serviços presenciais, como o Coletivo Cabeças e o Brechó Itinerante, foi extremamente afetade e precisou se reinventar.
Uma das “soluções de sobrevivência visionária” dos coletivos foi utilizar a estrutura do ateliê e tecidos reutilizados para a confecção de produtos para vendas e doações. Foram produzidas máscaras de proteção (inclusive um modelo para leitura labial), xampus biodegradáveis e sabão. Além disso, o coletivo contou com o apoio de clientes e amigos, que colaboraram com dinheiro, doação de alimentos e outras formas de afeto. Entre os doadores está a Casa Chama, ONG com foco em artistas transvestigeneres já perfilada pela Emerge Mag.
O coletivo também fez uma força-tarefa para adaptar as vendas para o digital. A mudança foi bem desafiadora, uma vez que, conforme explica Xole, o tempo do coletivo é o de passar café no coador de pano, sentar para uma prosa e acreditar muito no valor da presença e do presente. Esses valores são perceptíveis na própria comunicação do coletivo, que não possui placa na porta da sede e nem fotos de cabelos (antes e depois) no Instagram. O grupo complementa:
“Somos do ‘boca a boca’ (em todos os sentidos). Na pandemia, estamos aprendendo como a informação chega pela tela y como nós também, a partir disso, nos comunicamos internamente. Como criar coletivamente sem sentir o cheiro do outro? O desafio é adaptar a comunicação, antes tão sensorial, para apenas o verbal. O digital mostra apenas superfícies y enquadramentos específicos – y não é nisso que acreditamos”
A adaptação tem gerado retorno. Recentemente, o Coletivo Cabeças foi selecionado para ser um dos projetos beneficiados pela Coletiva reXistência, iniciativa de ativismo social, formade por academiques de diversas cidades brasileiras, que oferece cursos online de formação complementar. Toda arrecadação com os cursos é revertida para organizações de assistência a comunidades trans, negras e indígenas (é trabalho militante, gente). A Emerge super apoia a iniciativa e convida todes para participar dos cursos, saiba mais aqui.
Após três meses de portas fechadas, o atendimento presencial do Coletivo Cabeças voltou no mês de setembro, respeitando todas as medidas de segurança e com rodízio entre integrantes, com o intuito de diminuir a circulação de pessoas na casa. Então, se você está precisando dar um trato nas madeixas ou querendo renovar os looks, cole na casinha da Rua Itararé. Como diz o grupo, “nossas imagens são armas, não cópias de novela”. E, não se esqueça, lave as mãos e fortaleça o corre autônomo!
FOTOGRAFIAS: Kalinca Maki
Esta reportagem integra o projeto Mapeamento de Coletivos e Produtores Culturais da Região Metropolitana de São Paulo e conta com apoio do Edital ProAC nº 14/2019, de incentivo ao desenvolvimento da cultura popular, tradicional, urbana, negra, indígena e plural no Estado de São Paulo. Veja outras reportagens da série:
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