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Impacto socioambiental: a moda sustentável de mulheres negras

03/10/2022

Terceira reportagem de Emerge Potências da Moda apresenta a Az Marias, que cria roupas com resíduos têxteis, e a Da Lama, marca artesanal que atua em bairros periféricos. 

Observe as roupas que você está vestindo agora. É bem provável que as peças foram convencionadas por mulheres. Elas somam 75% da cadeia produtiva da moda brasileira. Ao mesmo tempo, não têm o protagonismo equivalente em remuneração, desfiles e influência – e nem nas posições de liderança do setor.  

Foi o incômodo com os valores pagos às costureiras brasileiras – e de como as mulheres de corpos reais são retratadas na moda – que motivou a professora de arte e estilista Cintia Felix, 36 anos, a criar a marca de moda Az Marias. Fundada em 2015 na cidade do Rio de Janeiro, hoje a Az Marias tem sede no Jardim Umarizal, zona sul de São Paulo. O negócio criativo treina, gratuitamente, costureiras a precificar seus produtos, medida que busca combater ao trabalho análogo à escravidão. As profissionais do bairro também são responsáveis por produzir as roupas da marca, o que gera renda na região e evita deslocamentos na imobilidade urbana da metrópole. 

A sustentabilidade é intrínseca na Az Marias. A marca tem como principal matéria-prima resíduos da indústria têxtil. A empresa utiliza tecidos subaproveitados para criar suas coleções, o que diminui a pegada de carbono e hídrica. Todas as embalagens são de papel reciclado, o que diminui em 90% o uso de plástico. Na prática, insumos que iriam para o lixo se transformavam em roupas que valorizavam a beleza das múltiplas mulheres brasileiras. Cíntia comenta:

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“Só é possível falar de moda sustentável se tivermos o senso de urgência – e estar verdadeiramente focadas – em deixar a vida das pessoas mais confortável. Moda é sobre pessoas”

CINTIA FELIX, ESTILISTA

As coleções da Az Marias são carregadas com um mix de streetstyle e ancestralidade. Há macacão de lurex prateado estilo Disco, vestido de tecido tecnológico com tratamento antiviral, casaquetos de patchwork de tecidos africanos e cropped de malha neon. 

Falando em ancestralidade, o nome da marca é uma referência a história de Cíntia. Na família da fundadora, todas as mulheres têm Maria em seu nome, desde sua avó, Rosa Maria, até a sua filha Maria Marisa. Assim, o nome da marca é uma homenagem a todas Marias, de A a Z.

Desde 2020, a Az Marias participa da São Paulo Fashion Week. Inclusive, a marca foi o primeiro Negócios de Impacto Socioambiental (NIS) a fazer parte do evento. A primeira coleção da marca no maior desfile de moda da América Latina celebrou Nzinga a Mbande (1581-1663). Diplomata, chefe militar e estrategista, Nzinga foi rainha dos reinos de Ndongo e do Matamba. Por quatro décadas, ela liderou a resistência contra a ocupação portuguesa na região que deu origem a Angola. Com a coleção, a Az Marias reforçou a força de ser mulher negra e a resistência contra as agressões. 

O conjunto da obra fez a Az Marias receber dois grandes reconhecimentos em 2022: O Prêmio Empreendedora Destaque, da Assembleia Legislativa de São Paulo, e o Prêmio Negócios Inspiradores, do Grupo Mulheres do Brasil. Hoje, os principais canais de venda da marca são a loja virtual, o Instagram e as feiras de produtos criativos da cidade. 

AzMarias Moda Emerge Mag
AZ MARIAS: ROUPAS TÊM COMO PRINCIPAL MATÉRIA-PRIMA RESÍDUOS DA INDÚSTRIA TÊXTIL

NUMA INDÚSTRIA CONTROVERSA, A SOLUÇÃO EMERGE DAS PERIFERIAS 

O Brasil é a maior cadeia têxtil do ocidente. O país reúne desde produtores de fibras, tecelagens e confecções até grandes varejistas. Somente o segmento têxtil e de confecção faturou R$ 161 bilhões em 2020, de acordo com a Abit. 

Ao mesmo tempo, o setor gera enorme quantidade de carbono, é dependente de matérias primas não-renováveis e contamina o solo e as águas com componentes químicos. Apenas na região do Brás, o maior polo de confecção do país, 45 toneladas de resíduos têxtil são enviados aos aterros sanitários todos os dias (Fios da Moda/2021).

E o panorama do setor é complexo. A maioria dos negócios são de micro e pequeno porte, e operam na lógica de sobrevivência. Por outro lado, há o grande varejo e tecelagens centenárias, com enorme concentração de poder. Uma vez que o poder dos agentes é bem diferente, não dá para exigir a mesma régua para todos.

Mas como pensar em quem produz e de qual forma é feita a cadeia produtiva? Quão conectados realmente estamos com o desenvolvimento socioambiental e a moda sustentável? 

Criar, confeccionar e vestir uma roupa pode ser um ato político. Como tem mostrado a série Emerge Potências da Moda, diversos negócios criativos têm desenvolvido soluções originais para problemas reais, além de colocar questões como raça e gênero na pauta. 

Esta reportagem também é em defesa das mulheres negras na indústria da moda – um chamado de celebração, com os devidos créditos, pelo trabalho que elas realizam. O afro empreendedorismo é uma invenção das mulheres negras. Durante séculos, foram elas que tiveram que se reinventar e driblar o racismo para ter fonte de renda. E elas têm avançado, mesmo frente ao silenciamento e baixo acesso a crédito e patrocínios.

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Para nós, pessoas pretas, a moda não é apenas tendência. É afeto, ancestralidade, expressão e ferramenta de construção – e perpetuação – da nossa cultura.

Assim como eu, a repórter que vos escreve, Laís Fernanda, 34, é nascida e criada na periferia da Zona Leste de São Paulo. Arte educadora, artista visual e estilista, Laís criou a marca de moda Da Lama durante a sua gestação em 2014. 

Da Lama Moda Emerge Mag
DA LAMA: MODA COM INSPIRAÇÃO NA ANCESTRALIDADE AFRICANA E ARTE MANUAL E INDÍGENA 

A Da Lama cria roupas e acessórios com inspiração na ancestralidade africana, arte manual indígena e histórias de mulheres como ela – e como nós. A marca se vale da reutilização e ressignificação de materiais. Calças jeans de descarte se tornam bermudas e saias. Papel, cola, tinta spray e retalhos se transformam em brincos. Todas as criações são artesanais e pintadas à mão pela própria artista, o que torna cada peça única. Lais explica:

“A Da Lama é uma marca que produz moda sustentável dentro das comunidades. A sustentabilidade está desde a seleção de matéria-prima e modelagem até a produção e distribuição. Somos um comércio local para pessoas de bairros periféricos”

LAÍS FERNANDA, ESTILISTA

Lais divide a atuação à frente da marca com o trabalho de artista visual e grafiteira. Ano passado, via convite da Secretaria de Cultura do Município de São Paulo, ela pintou um mural com cerca de 50 metros no CEU Lajeado, em Guaianazes. A obra recebeu o nome “Liberdade”. 

Além de Thais, mais mulheres potentes integram a Da Lama. São elas: Aline Laila, cabeleireira e modelo da marca, responsável pela beleza e make editoriais; Leticia Souza, produtora cultural; e Bábi Batista; modelista e pilotista – e fundadora de outra marca local, a Panos da Perifa.

De acordo com Lais, o mercado da moda cria barreiras que são inversamente proporcionais ao poder aquisitivo das consumidoras. 

“A marca rompe um paradigma ao criar roupas inclusivas e de qualidade. Valorizamos quem faz e quem usa: mulheres negras da periferia”

LAÍS FERNANDA, ESTILISTA

FOTOGRAFIAS: Kalinca Maki e Rafael Felix.

BELEZA E MAQUIAGEM: Kali Beauty.


Emerge Potências da Moda

Criação da Emerge Estúdio, unidade de pesquisa, conteúdo e inteligência de negócios da Emerge, Emerge Potências da Moda é uma profunda investigação de negócios emergentes de moda da cidade de São Paulo, com foco em lideranças de periferias, LGBTQIA+, negros, mulheres, indígenas urbanos e pessoas com deficiência. Além da série de reportagens, integram o projeto pesquisas quantitativa e qualitativa, debates interativos (lives) e relatório micro setorial de economia criativa.

Emerge Potências da Moda foi contemplado na chamada aberta RE-FARM CRIA, uma iniciativa do Instituto Precisa Ser + Farm. Por meio de patrocínio, o programa apoia o desenvolvimento de projetos e ações de coletivos, organizações sem fins lucrativos e pessoas físicas em capitais do Brasil e territórios periféricos do Rio de Janeiro.

O projeto conta com apoio da indústria de aviamentos Ludan Franjas, da produtora de vídeos e fotografias In.Par e du maquiadore Kali Beauty.

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