Na maior festa do país, fervo e folia compartilham espaço com temas que pautam a sociedade atual, como racismo, fanatismo religioso e fake news
“No carnaval, esperança
Que gente longe viva na lembrança
Que gente triste possa entrar na dança
Que gente grande saiba ser criança”
Com versos de Chico Buarque e pedindo licença as minhas mães baianas, nossas mães do samba, hoje falarei sobre o grande amor da minha vida: o Carnaval.
A maioria dos ensinamentos que aprendi sobre minha ancestralidade, minhas raízes e a nossa história foi por meio das escolas de samba, com seus enredos e desfiles – e eu intrusa lendo todos os detalhes de uma sinopse.
A tática orgânica e natural era um caminho para expandir o conhecimento além da superficialidade da história contada nas salas de aula.
Muito da minha identidade e personalidade vêm desse amor, que também é herança de família. Foi a minha paixão pelo Carnaval que despertou o interesse em ser graduanda de Produção Cultural – apenas um dos inúmeros exemplos da influência da manifestação na minha vida.
Uma das coisas que mais me fascina é o fato de o Carnaval ser sempre um ato político. Importante lembrar que não estamos falando de política partidária, mas sim de mobilização popular.
Ainda na Primeira República (1889-1930), os negros utilizavam o Carnaval para afirmar sua autonomia, ambições e autorrepresentação.
Datam dessa época os grupos Africanos de Ramos, Clube Liga Africana, Índio de Ouro, Sociedade Dançante Carnavalesca União das Cores e Sociedade Carnavalesca Somos Irmãos.
Como lembra o historiador Eric Brasil Nepomuceno, a atuação festiva demandava uma complexa organização com uma estrutura administrativa, ensaios, coleta de fundos, gerenciamento de recursos, sedes, controle dos sócios e relação com as autoridades.
“Tudo isso era realizado sem que silenciassem o desejo de expressar uma identidade baseada em imagens da África”, afirma Eric num artigo sobre o tema.
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TRANSFIGURAÇÃO CARNAVALESCA
Agora, vamos parar para refletir: apesar de o samba ter suas origens enraizadas na cultura africana, vivemos em um país racista e escravocrata, e o alto escalão das escolas de samba é pouco representado pelos negros.
Hoje, o Carnaval é um negócio. Em 2020, o evento movimentou cerca de R$ 8 bilhões, de acordo com estimativa da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo.
A partir do momento em que esses espaços passaram a ter mais visibilidade e financiamento, a população negra começou a perder seu protagonismo. E, apesar dessa falta de protagonismo, por muitas vezes, a luz reluz sobre o negro somente no período carnavalesco – e fora dele o negro ainda vive um processo de exclusão social e racial.
Há um samba de 1982 do Camisa Verde e Branco, composto por Talismã, que aborda a questão:
“Negro paga imposto, negro vai a guerra. Negro ajudou a construir a nossa terra. Temos a pergunta, não nos leve a mal: por que só no Tríduo de Momo que o negro é genial?’’
Voltando ainda mais na história, em 1970, na música Dia de Graça, o compositor Candeia, portelense nato e fundador do G. R. A. N. E. S. Quilombo, aponta para o fato de que a questão racial, após o fim do Carnaval, torna-se um determinante à volta do negro para sua velha realidade:
“Deixa de ser rei só na folia e faça de sua Maria uma rainha todos os dias. E cante um samba na universidade, verás que teu filho será príncipe de verdade. Aí, então jamais tu voltarás ao barracão’’
Aproveitando o gancho de Candeia: em 1975 ele abordou questões que estão em pauta atualmente, como descaracterização, apropriação e expropriação dessas manifestações culturais.
Quando Candeia fundou a Escola Quilombo, seu primeiro objetivo era tornar a associação um centro de resistência e resgate da cultura negra brasileira para enfatizar a sua importância e contribuição na formação do Brasil. A escola também discutiu e reconstruiu uma identidade cultural afro-brasileira capaz de garantir a perenidade de suas manifestações socioculturais, enquanto legado dos primeiros africanos que foram trazidos para o Brasil.
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DESFILES MEMORÁVEIS
Não nos esqueçamos que, desde o início, a festa foi, por muitas vezes, perseguida, censurada e reprimida. Dessa forma, não podemos pensar em um Carnaval longe de questões políticas.
No Rio de Janeiro, sempre foi muito comum enredos críticos e políticos. Por sua vez, em São Paulo, parece que ainda temos receio de tocar na ferida.
Em 1989, a Beija-Flor marcou a história com o enredo “Ratos e Urubus – Larguem a minha fantasia’’. Na ocasião, o carnavalesco Joãozinho Trinta abriu mão do luxo e apresentou um Cristo Redentor vestido de pessoa em situação de rua (popularmente, mendigo), rodeado de semelhantes em meio a miséria. O Cristo de Joãozinho foi censurado e, no dia do desfile, veio coberto por um saco de lixo com os dizeres “mesmo proibido, rogai por nós”.
“Este enredo é um protesto. Protesto. Protesto a esta grande maldade que estão fazendo com a nossa terra, com a nossa gente, com o nosso Brasil”, disse Joãozinho na época.
Em 2018 – exatamente 130 anos após a Abolição da Escravatura – a Paraíso da Tuiuti colocou na avenida o enredo “Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?’’. A obra recontou a história da escravidão no Brasil e fez uma crítica ao racismo e as dificuldades atuais dos trabalhadores brasileiros. Dentre as referências do carnavalesco Jack Vasconcellos, estava o livro A Elite do Atraso – da Escravidão À Lava Jato, do sociólogo Jessé Souza.
CHAMA NO AGORA
Com as bênçãos de meu Pai Oxalá, em 2020 também tivemos grandes enredos com temas políticos. E vamos combinar que, o momento atual do país, onde a Arte e a Cultura passam por tempos sombrios, posicionamento, autenticidade e compromisso social são formas de resistência e luta.
A arte tem obrigação de fazer refletir – e as escolas de samba, tanto no Anhembi quanto na Sapucaí, ensinaram o povo brasileiro muito mais do que samba.
Independente de resultados, pudemos ver lindos desfiles, como:
- Tom Maior, com o enredo “Coisa de Preto”, que mostrou a importância e contribuição do negro na construção do Brasil, com destaque para o último carro alegórico que questionou o tratamento desigual do Estado para pessoas negras, trazendo símbolos de Xangô (o Orixá da justiça) e uma escultura de Marielle Franco.
- Águia de Ouro, com o “Poder do Saber”, abordou os benefícios e os desafios do conhecimento em uma grande homenagem ao educador Paulo Freire, reconhecido mundialmente como uma das mais relevantes referências na educação contemporânea. O enredo também fez menção a mais famosa música de Geralda Vandré, Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores, um hino na luta contra a ditadura militar. O desfile trouxe para a escola o título inédito de Campeã do Carnaval de São Paulo.
- Mocidade Unida da Mooca, que enalteceu a vida, a obra e o legado de Abdias do Nascimento, um herói da nação brasileira que dedicou sua vida ao ativismo em prol do povo negro. Um protesto em forma de arte contra as injustiças e preconceitos sofridos pelo povo negro e por grupos minorizados em oportunidades sociais e econômicas. O desfile também homenageou Marielle Franco, os nove jovens mortos no baile funk em Paraisópolis e tantos outros que têm sua vida interrompida em decorrência do racismo
E no Rio de Janeiro…
- Grande Rio fez uma homenagem ao líder religioso Joãozinho da Goméia e um pedido por mais tolerância religiosa. O que mais mexeu com a gente foi o refrão “eu respeito seu amém, você respeita o meu axé”.
- Mangueira, escola campeã quando se trata de crítica social, trouxe uma releitura da história de Jesus, representando-o com uma estátua de um jovem negro crucificado com balas alojadas no corpo e por uma mulher negra, interpretado pela rainha da bateria da escola Evelyn Bastos.
- São Clemente, que sempre alia crítica com bom humor, esse ano não fez diferente, trouxe para a avenida contos do vigário históricos, com destaque para os laranjas e uma alegoria representando a propagação de mentiras nas plataformas virtuais como instrumento para influenciar as decisões políticas das massas. “Brasil, compartilhou, viralizou nem viu! E o país inteiro assim sambou, caiu na fake news”.
- A Viradouro celebrou As Ganhadeiras de Itapuã, grupo de mulheres que, por meio de serviços como lavagem de roupa e venda de peixes, juntava dinheiro para pagar a própria alforria e de outros escravizados no século 19. O enredo fez a escola ganhar o Carnaval do Rio de Janeiro em 2020.
No mais, como diz Maria Rita na música Novo Amor: “a luz se apaga porque já raiou o dia e a fantasia vai voltar para o barracão, outra ilusão desaparece quarta-feira, queira ou não queira terminou o Carnaval”.
Que possamos levar os ensinamentos dessas escolas de samba ao nosso dia a dia para continuarmos resistindo social, cultural e economicamente. Apesar das mazelas, continuamos firmes cantando e sambando.
Parafraseando Erica Malunguinho, “a nossa revolução será feita com arte, cultura e muita política”. Abram alas e sobe o Samba!