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Do particular ao universal: Chico Science, a música e o mangue

12/03/2024

Próximo do aniversário de Chico Science, integrante do grupo Nação Zumbi — ele completaria 58 anos em 13 de março —, trazemos suas contribuições para o movimento que reconfigurou a música em Recife e no Brasil

“Modernizar o passado. É uma evolução musical”, com este verso, Chico Science & Nação Zumbi começam Monólogo ao Pé do Ouvido, dando início ao álbum Da Lama ao Caos, o primeiro do grupo. O disco, que completa 30 anos em abril de 2024, foi um marco para a música nacional, unindo diferentes elementos musicais, que iam do maracatu ao heavy metal, e carregando uma estética única, que colocava Recife no centro das atenções. Anos depois, o disco ainda é visto como um dos principais da década de 1990 e da história do Brasil. E este primeiro verso pode ser entendido como uma síntese da proposta que Chico Science, e todos os integrantes do Manguebeat, tinham com a arte que faziam. 

Três anos antes, em 1991, Fred Zero Quatro, fundador da banda Mundo Livre S/A, outro expoente do Manguebeat, escrevia o 1º Manifesto do Movimento Mangue Bit, que depois ficou conhecido como Caranguejos com cérebro. No texto, Fred Zero Quatro enfatiza o colapso da capital pernambucana, que, decorrente de uma suposta ideia de progresso, destruiu seus manguezais, intensificou as desigualdades e agravou o quadro de miséria e caos urbano. 

1º MANIFESTO DO MOVIMENTO MANGUE BIT: FRED ZERO QUATRO FALA SOBRE O COLAPSO DE RECIFE

A estagnação que a cidade passava também era vista na música. Em Do Frevo ao Manguebeat, do jornalista José Teles, há um trecho de uma entrevista de Alceu Valença ao jornal Diário Oficial de Pernambuco, em março de 1992. Na publicação, o artista comenta que o estado de Pernambuco está velho e não consegue ser contemporâneo. “O que acontece em Pernambuco é que nós somos extremamente conservadores. A gente quer o forró, mas quer que o forró seja exatamente do mesmo jeito”, explica.

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A saída para muitos dos jovens, de diferentes classes sociais de Recife, era uma: “injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife”, como fala Fred Zero Quatro no manifesto. Era necessário modernizar o passado, fazer algo novo, um “maracatu psicodélico”, uma “capoeira da pesada” a partir de um “berimbau elétrico”. Assim, o Manguebeat ganhava forma e conceito. Tendo como imagem-símbolo uma antena parabólica enfiada na lama, os mangueboys e manguegirls estavam atentos para as influências que vinham de fora, com o objetivo de promover um circuito energético e renovar a cultura da cidade. Para Chico Science, o mangue foi o modo de escapar do marasmo e de promover uma música universal.

ONDE ESTÃO OS HOMENS-CARANGUEJOS?

Uma das grandes referências para quem participou do movimento Manguebeat é o médico e cientista, Josué de Castro, autor de livros como Geografia da Fome e Homens e Caranguejos, este último um romance que inspirou boa parte das letras de Chico Science. Nesta obra, Josué trabalha o mimetismo entre homens e caranguejos, capazes de se confundirem nas lamas, cada um em busca da sobrevivência. O cientista destaca a fome como um problema social, como algo que ele viu e descobriu durante sua infância. A fome muda as pessoas, as transformam. “E quem era inocente hoje já virou bandido / Pra poder comer um pedaço de pão todo fudido” canta Chico em Banditismo por uma Questão de Classe. Os homens e mulheres das histórias de Josué e Chico denunciam a desigualdade existente no mundo capitalista, trazem à tona o que de pior este modelo econômico pode oferecer.

CHICO SCIENCE E NAÇÃO ZUMBI: O ÁLBUM DA LAMA AO CAOS REVOLUCIONOU A MÚSICA BRASILEIRA

Em entrevista para a Folha de S. Paulo, em 1994, Chico Science falava que a fome também era de informação. “Na imagem de Josué, somos caranguejos com cérebro, como os pescadores que ele descreveu no livro Homens e Caranguejos. Eles pescam e comem caranguejos para depois excretá-los no ciclo caótico. Fazemos uma música caótica”, aponta. Em outro depoimento, agora para o jornal A Tarde, de Salvador, Chico comenta que pegava caranguejos no mangue e os vendia para juntar dinheiro em ir a bailes da periferia de Recife. É de lá que sai o sustento, a diversão e a absorção da cultura. Os homens-caranguejos vivem esta relação simbiótica com os manguezais. É por meio deste ciclo caótico, que tem como pilar um ecossistema tão rico e fértil que a cultura é transmitida, uma cultura capaz de desentupir as artérias da Manguetown.

“Na imagem de Josué, somos caranguejos com cérebro, como os pescadores que ele descreveu no livro Homens e Caranguejos. Eles pescam e comem caranguejos para depois excretá-los no ciclo caótico. Fazemos uma música caótica”

CHICO SCIENCE

O ambiente é o mesmo: o Mangue, berçário da vida marinha. Um ecossistema que pode ser entendido como um sinônimo de vida e diversidade, ao mesmo tempo, que demonstra a miséria, a animalização dos homens, a fome. Mas é no Mangue, este ambiente tão rico, que o levante pode começar, não apenas um levante social, mas artístico e estético, de uma cidade que precisa de um choque rápido, um choque que veio através da música. 

CHICO SCIENCE: O MÚSICO COMPLETARIA 58 ANOS EM 13 DE MARÇO

Nesse sentido, Antene-se, a nona faixa de Da Lama ao Caos, é uma música que exemplifica esta relação. A canção pode ser vista como uma continuação do manifesto Caranguejos com cérebro. Uma versão musical do manifesto.

Em uma letra não muito extensa, Chico Science consegue elencar as dinâmicas vividas na capital pernambucana. A lama é a insurreição de uma Recife desigual, a quarta pior cidade do mundo naquele momento. Os homens-caranguejos, muitas vezes alienados e presos às relações de trabalho precárias, são convocados a se afirmarem e a entenderem-se como mangueboys e manguegirls, a antenarem suas cabeças em busca de boas vibrações. Diferentemente dos homens-caranguejos de Josué de Castro, que se encontram presos à lama, os de Chico buscam, através da incorporação do universal, uma forma de viver as adversidades e superá-las, sobreviver ao caos da cidade e se organizarem enquanto um coletivo. 

São personagens em processo de zoomorfização, que dividem suas casas com os urubus, como nos conta Manguetown. Porém, diferentemente do pássaro, os humanos que habitam os mangues não possuem asas. A constante comparação com os animais mostram as condições vividas por boa parte da população da “Veneza brasileira”, que vão ao mangue “catar lixo, pegar caranguejo e conversar com urubu” e onde ninguém consegue fugir ao “cheiro sujo” e a “vida suja” das lamas.

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Ao mesmo tempo, buscam saídas para estes sufocamentos, como sair para beber com os amigos ou pegar emprestada as asas do urubu para encontrar uma mulher para dividir a vida na lama. Novamente, as estratégias de sobrevivência passam pela coletividade. Nestas contradições vividas, os mangueboys e manguegirls sonham, se divertem, se revoltam e se unem. 

Um retrato tão particular sobre a realidade de boa parte do povo recifense também pode ganhar proporções universais e dialogar com outras realidades. Frases como “O de cima sobe e o de baixo desce” podem dizer sobre outros cotidianos no Brasil e “Que eu me organizando posso desorganizar” servem como lemas para a luta política. Mais uma vez, o que se vê, é esta relação entre o particular e o universal, entre o que pode ser visto como algo regional, mas que é exemplo de algo maior. Não são elementos contraditórios. Pelo contrário. Eles se convergem, em uma amálgama que, ao fincar a antena na lama, energizou toda uma cena musical. 

No próximo 13 de março, dia em que Chico Science completaria 58 anos, sua memória e sua música continuam vivas. Suas letras continuam tão atuais do que nunca, falando de uma Recife que se reflete em tantas outras metrópoles do país e do mundo. Também percebemos como muitos dos temas retratados pelo artista continuam. A fome, a desigualdade e a miséria persistem em um território que a polícia continua a perseguir inocentes. Porém, continuando a parafrasear o próprio Chico Science, “o homem coletivo sente a necessidade de lutar”. Lutar para que seja possível sair da lama e enfrentar os urubus.

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Fotos: Fred Jordão
Edição: Teresa Cristina

Quem escreveu

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Antônio Moraes

Um paulista-mineiro movido por cultura, esportes, gastronomia e espírito urbano. Graduado em jornalismo pela Universidade Federal de Minas Gerais, com passagens pelo Instituto Cultural Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais (BDMG Cultural) e Livraria da Travessa.

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