Pesquisar
Close this search box.
Pesquisar
Close this search box.

Neurodiversidade: Autistas LGBTQIA+

01/11/2021

emerge-mag-sophia-mendonca-rafael-felix

Ser LGBTQIA+ é mais comum entre autistas do que no restante da população. Consultamos autistas LGBTQIA+ e a ciência para saber o porquê.

Durante a adolescência, a curitibana Polyana Sá costumava dizer que, se existisse um bingo da diversidade, ela ganharia fácil. Influenciadora e palestrante, a jovem é mulher, negra, periférica, pansexual e autista. Com bom humor e sinceridade, ela como lida com tantas interseccionalidades na página Hey Autista, que tem 13 mil seguidores no Instagram. Os conteúdos abordam capacitismo, neurodiversidade e seus sentimentos, como a sensação de não pertencimento, sempre com cuidado em relação a estereótipos e exclusão.

Hoje, aos 23 anos, Polyana divide o tempo dedicado às redes com a graduação em Engenharia de Bioprocessos, da Universidade Federal do Paraná. Ela também tem hiperfoco — máxima concentração em determinadas tarefas ou assuntos — em discografias antigas. Uma das suas preferidas é a do norte-americano Robert Johnson, um dos músicos mais influentes do blues, que viveu na década de 1930.

Ao longo da entrevista, Polyana diz que o conjunto de suas particularidades determina sua vida, o que consome e o impacto social do seu trabalho.

“É impossível dissociar raça, gênero, classe e ser autista LGBTQIA+. Se eu não fosse tudo isso, talvez não tivesse me jogado no ativismo”

Polyana Sá, criadora de conteúdo
POLYANA SÁ ATIVISTA DA NEURODIVERSIDADE - autistas LGBTQIA+
POLYANA SÁ: ativista neurodiversa e fã de discografias antigas (Foto: arquivo pessoal)

Neste momento, é bem possível que você esteja pensando “o que é essa tal de neurodiversidade?”. Então, vai uma rápida explicação: neurodiversidade é a tomada de consciência de que existem diferenças neurológicas que causam variações na comunicação, interação social e sensibilidade dos indivíduos.

Essas variações têm raiz genética e impactam na forma de sentir e entender o mundo, no comportamento, interesses e relações interpessoais. O conceito abarca autistas, pessoas com TDHA, dislexia, dispraxia e outros transtornos neurológicos de desenvolvimento.

O termo foi cunhado nos anos 90 pela australiana Judy Singer, socióloga e mãe de autista. Ela diz que pessoas com transtornos de desenvolvimento não sofrem de doenças ou distúrbios, e não precisam ser curadas. Elas são apenas neurodivergentes, mais uma faceta da diversidade humana, e precisam ser reconhecidas e respeitadas. Anos mais tarde, Judy integrou movimentos de direitos civis em defesa das minorias neurológicas.

LEIA TAMBÉM: Gênero e sexualidade com a fotógrafa Camila Falcão

AUTISTAS SÃO MAIS PROPENSOS A SER LGBTQIA+

Na década de 1990, à medida que um número crescente de crianças buscava atendimento relacionado à identidade de gênero, médicos e pesquisadores começaram a notar uma tendência: boa parte estava dentro do espectro autista.

Mais recentemente, com avanços em estudos genéticos e de comportamento, pesquisas científicas têm constatado que a transgeneridade, orientações e expressões afetivas e sexuais dissidentes são mais comuns na população autista do que entre os neurotípicos, como são chamadas as pessoas não neurodivergentes.

Uma das pesquisas foi realizada em 2014, no Centro Médico Nacional Infantil de Washington, nos Estados Unidos, com pessoas de 6 a 18 anos, com e sem transtornos de desenvolvimento neurológico. Foi identificado que a variação em identidade de gênero era 7,59 vezes mais comum nos participantes com autismo. Entre os TDAH, a taxa foi de 6,64 vezes. A pesquisa segue sendo feita, obtendo dados semelhantes.

De acordo com John Strang, o neuropediatra à frente dos estudos, crianças e adolescentes com transtornos do espectro autista tendem a ser menos influenciadas pelas normas sociais. Dessa maneira, podem apresentar seu eu interior de forma mais autêntica. Numa entrevista de 2020, ele afirmou:

“A coexistência do autismo e diversidade de gênero pode ser devido uma expressão mais honesta de experiências subjacentes”

John Strang, neuropediatra

Ou seja, apesar de pressões internas e externas, podemos dizer que o cérebro autista, naturalmente, gera um bug no sistema.

“MEU MAIOR FANTASMA ERA SER TRANSGÊNERO, NÃO AUTISTA”

Quando criança, a mineira Sophia Mendonça era bastante comunicativa. Embora falasse mais sobre seus interesses em bonecas e esmaltes, conversava sobre os mais difíceis temas de forma contextualizada. Outra característica era falar sem filtros, inclusive trazendo a mesa de jantar assuntos considerados “inadequados”.

“Minha inteligência era alta, mas menos funcional. Ter uma percepção muito aguçada dos fenômenos ao meu redor – e buscar compreender a lógica por trás de tudo – gerava muita angústia”

Sophia Mendonça, jornalista

Aos 11 anos, Sophia recebeu o diagnóstico de autismo. O que poderia ser um caminho de autoconhecimento e troca com o mundo, se tornou uma tensão. Ao longo da história, discursos religiosos e científicos, amparados pela legislação, consideraram a homossexualidade e transgeneridade patologias. Assim, Sophia recebeu um tratamento violento, comum em autistas LGBTQIA+. Era comum ouvir comentários como “você precisa aprender a ser homem”, “não sabe ouvir não” e “se tem ‘problema’ com o seu corpo, precisa ser curada”.

SOPHIA MENDONÇA JORNALISTA TRANS - autistas LGBTQIA+
SOPHIA MENDONÇA: transição de gênero aos 24 anos (Foto: Rafael Felix)

Para se encaixar no que o mundo esperava, Sophia adotou um comportamento comum no autismo. O masking (camuflagem social) consiste em estratégias usadas para passar a impressão de que a interação social está satisfatória. A pessoa pode repetir falas, criar roteiros mentais e monitorar de forma exacerbada as próprias expressões corporais e faciais, com receio de ser percebida “diferente”.

Sabe quando você está no aniversário do tio bolsonarista — porque a sua mãe insistiu — e tem que fazer cara de paisagem? O masking é tipo isso, mas muito bem premeditado, e mais angustiante.

Graças as deusas, o cenário de terror ficou para trás. Hoje, aos 24 anos, Sophia é outra mulher. Ela é graduada em jornalismo, mestranda em comunicação social pela Universidade Federal de Minas Gerais e autora de sete livros, com obras de diferentes estilos (poesia, fantasia, crônicas e negócios). Junto da mãe Selma, também autista, é fundadora do site Mundo Autista, onde narra vivências relacionadas ao espectro.

LEIA MAIS: Amor e Sexo PCD: pessoas com deficiência também transam

Romântica assumida, Sophia é heterossexual com inclinação a demissexualidade, orientação em que o desejo sexual acontece somente após conexão emocional com o parceiro.

Devido ao autismo, Sophia tem dificuldade para ler as pessoas. Perceber os sentimentos, expressões e desejos dos outros são desafios, mas não a impedem de se relacionar. Ela namora um homem cisgênero e heterossexual, também autista, que trabalha como redator numa rede de televisão.

“Meu namorado me valoriza como a mulher que eu sou”, diz ela.

*O autor da reportagem é neurodivergente.

Quem escreveu

Picture of Italo Rufino

Italo Rufino

Jornalista pós-graduado em marketing com dez anos de experiência. Trabalhou na revista Exame PME (Editora Abril), nos sites Diário do Comércio e Projeto Draft e na ONG de urbanismo social A Cidade Precisa de Você. Natural de Diadema (RMSP). Pai de uma criança de 10 anos. Fundador da Emerge.

Inscreva-se na nossa

newsletter

MATÉRIAS MAIS LIDAS

ÚLTIMAS MATÉRIAS

NEWSLETTER EMERGE MAG

Os principais conteúdos, debates e assuntos de cultura, direitos humanos e economia criativa interseccional no seu e-mail. Envio quinzenal, às quartas-feiras.