Há 18 milhões de pessoas com deficiência no Brasil. Ou seja, 8% dos brasileiros têm deficiência física, mental, intelectual ou sensorial. Porém, os números podem ser bem maiores devido a subnotificação e desatualização de informações. No caso do autismo, por exemplo, um dos últimos dados é de 2010, e tem origem em um estudo da Organização Mundial da Saúde que cita o Brasil, onde, naquela época, havia aproximadamente 2 milhões de pessoas com autismo.
Quando o assunto é PCD, o senso comum remete a pessoas ingênuas, “especiais” e angelicais. Como se fossem anjos, são vistos como assexuais e desprovidos de desejos. E é aí que há o engano. Um dos efeitos do capacitismo – discriminação e o preconceito social contra pessoas com deficiência – é negar, entre tanto outros, o direito sexual e reprodutivo.
“Ainda persiste na sociedade o modelo médico da deficiência, que a associa a algo ruim, que precisa de tratamento e deve ser ‘curada’”, diz o cineasta Daniel Gonçalves.
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Com uma deficiência de origem desconhecida que afeta sua coordenação motora, Daniel é diretor do documentário Assexybilidade. O filme apresenta 15 pessoas com deficiência, que relatam suas histórias de flerte, beijo na boca, namoro, masturbação, fetiche, sexo e capacitismo.
Um dos pontos altos de Assexybilidade é ouvir das pessoas com deficiência coisas que a sociedade não espera que elas digam e façam. No elenco, participam as produtoras de conteúdo Lelê Martins e Amanda Soares e performer e videoartista Estela Lapponi, entre outros. Finalizado em 2023, com exibições em festivais nacionais e internacionais, o filme ainda não tem data de lançamento nos cinemas brasileiros.
Há algumas semanas, Emerge conversou com Daniel sobre o filme, estigmas sociais e porque precisamos falar de sexualidade de pessoas com deficiência. Veja os principais trechos abaixo:
Emerge Mag: Qual é a grande potência do documentário?
Daniel Gonçalves: A sexualidade ainda é um tabu. Sexualidade de pessoas com deficiência, é ainda mais. Porém, há muitas histórias para serem contadas e pautas para serem debatidos. Por exemplo, no último carnaval, o filme foi homenageado no desfile da Orquestra Voadora, bloco do Rio de Janeiro. Foi incrível ter várias pessoas com deficiência dançando, tocando instrumentos e se divertindo. No entanto, houve comentários tóxicos nas redes sociais, afirmando que estávamos sexualizando todas as classes, inclusive “os vulneráveis”. A ideia para o documentário surgiu durante a produção do meu primeiro longa (Meu nome é Daniel), que tem uma sequência em que falo sobre minhas experiências sexuais. Junto ao Vinícius Nascimento, que assina o roteiro e a montagem, decidi levar o projeto adiante.
Há instituições que advogam sobre os direitos das pessoas com deficiência. Porém, o direito sexual e reprodutivo ainda é pouco abordado. Como humanizar essa causa?
DG: O que persiste na sociedade é o modelo médico da deficiência, que a associa a algo ruim, que precisa de tratamento e deve ser “curada”. Aparentemente, querem que continuemos num estado de dependência, em que não temos nossos direitos resguardados. Acontece que, nos últimos anos, tem se pregado um modelo social da deficiência, em que nossos “problemas” não são por nossa culpa, mas porque a sociedade não está preparada para receber as pessoas com deficiência. Se houvesse rampa em todos os lugares, não haveria problema de acesso para pessoas com deficiência. Cadeirantes teriam seu direito de ir e vir, de locomoção em espaços de uso público. Ainda na mesma linha, 90% do transporte do Rio de Janeiro é de piso alto, o que demanda muito tempo para uma PCD entrar no veículo. Na Califórnia, onde fui apresentar o filme, tem ônibus com piso baixo, de fácil acesso para PCDs. As coisas mudarão quando mais pessoas como nós tivermos em posições de destaque – alguém como eu, um cineasta PCD. É um trabalho de formiguinha, mas é preciso ser feito. Precisamos aparecer, seja fazendo filme, entrevistas ou conteúdo para rede social.
Um reflexo do capacitismo é a infantilização de PCDs. Como o fato se relaciona com o debate sobre sexualidade?
No filme, há um personagem com síndrome de Down, o Pedro. Ele foi nosso último entrevistado. Antes, chegamos a falar com outras pessoas com Down, mas os pais parravam a participação quando ouviam o tema do documentário. A entrevista dele foi uma das mais fortes porque, na época, ele ainda era virgem. Ele tinha contado que tinha tido algumas namoradas, mas os pais, tanto dele quanto da companheira, não deixavam eles ficarem sozinhos para momentos de intimidade. Pedro falava que queria uma vida plena, com convívio social, namoro e trabalho.
O capacitismo também aliena PCDs sobre o como se proteger de infecções sexualmente transmissíveis e a distinção entre carinho e abuso?
Completamente. Ao todo, temos 15 personagens no filme, com relatos leves a mais pesados. Duas personagens mulheres contam relatos de abuso que sofreram por serem pessoas com deficiência. Quando o filme ser lançado em grande escala, a produção fará uma campanha de distribuição de impacto, com ações para que o debate chegue ao maior número de pessoas possíveis fora das salas de cinema. Queremos levar o longa para instituições de saúde, ministérios públicos e departamentos de polícia para falar sobre abuso sexual contra PCDs. De acordo com dados da Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas, nove a cada dez mulheres já sofreram algum tipo de abuso. Em muitos casos, mulheres deficientes intelectuais não reconhecem o ato como violência.
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Como se dá a intersecção entre deficiências e ser LGBTQIA+?
O filme rodou em festivais de filmes no mundo inteiro, incluindo festivais com temática LGBT. Percebo que os festivais de filmes LGBT são mais abertos a pauta PCD, mas isso não significa que PCDs não sofram preconceito dessa outra comunidade. Um cadeirante personagem do filme conta que, após se assumir publicamente gay, sentiu que aumentou os sentimentos de condescendência e pena por parte das pessoas do seu entorno. Foi como se ele não pudesse ser parte de dois grupos minorizados ao mesmo tempo. Outra personagem, uma pessoa trans cega, falou que, para a comunidade PCD, ela é “a trans” e, para a comunidade LGBT, é “a cega” – a intersecção dificulta relações nas duas comunidades, afirma ela. Viver nesse tipo de limbo é muito triste porque, embora diferentes, ambos os preconceitos têm a mesma origem: é a negação da humanidade da sociedade.
FOTO DE ABERTURA: Gabriela Bagrichevsky