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Uma feira de artesanato delas para elas

19/10/2020

Em Guarulhos, o Mercado Rosa-Choque evidencia a produção cultural e artesanal de mulheres, mães e LGBTQI+ para gerar renda e autonomia

Em Guarulhos, o Mercado Rosa-Choque evidencia a produção cultural e artesanal de mulheres, mães e LGBTQI+ para gerar renda e autonomia

Lançada em 1982 durante a ditadura militar, a canção “Cor de Rosa‑Choque” é uma dessas obras que ironizam a lógica de sociedades machistas e patriarcais, como a brasileira. Na canção escrita por Rita Lee em parceria com Roberto de Carvalho, a cor rosa (dita como uma cor feminina e delicada) é subvertida ao ser denominada cor de rosa‑choque – “choque” este que remete à força e ao abalo brusco que as mulheres são capazes de provocar na estrutura da sociedade.

Quase 30 anos depois, o hit musical inspirou a criação do Mercado Rosa-Choque, feira a céu aberto realizada em Guarulhos onde mulheres e pessoas LGBTQI+ expõem e vendem seus trabalhos nas áreas de música, moda, arte, design e gastronomia com foco em fomentar a identidade autônoma de mulheres.

FEIRA A CÉU ABERTO: IDENTIDADE E GERAÇÃO DE RENDA PARA MULHERES

A ideia nasceu de um happy hour entre as amigas Joselda Bellissimo, estilista de formação e fotógrafa amadora; Andressa Rocha, artesã e fundadora da marca Em.canto; e Monique Falconeri, fundadora da loja Elegance Presentes, (o trio que apareceu na foto de abertura desta reportagem). Mães, artesãs e empreendedoras, elas compartilhavam os desafios de gerarem renda com seus trabalhos manuais, como a pouca oferta de feiras e bazares na cidade e dificuldades para emplacar seus trabalhos na capital.

Em São Paulo, apesar das feiras a céu aberto estarem espalhadas por diversas regiões da cidade e contemplarem diferentes temáticas, elas são bastante concorridas e nem sempre há espaço para todos os interessados. É o caso da Feira do Vão Livre do Masp, na Avenida Paulista; a Feira Jardim Secreto, na Praça Dom Orione no Bixiga; a Feira Boliviana da Kantuta, na Praça Kantuta no Pari; a tradicional Feirinha da Liberdade, na Praça da Liberdade; entre muitas outras. Joselda, mais conhecida como Jo, comenta o panorama:

“As mulheres precisam correr com suas próprias pernas. Se a gente esperar que alguém faça algo pela gente, as coisas não acontecem. Então, decidimos fazer por nós e criar uma feira que acolhesse outras mulheres, mães e empreendedoras”

A primeira edição do Mercado Rosa-Choque aconteceu em agosto de 2019, na Casa Lado, um estabelecimento que reúne um bar, um brechó, uma loja de discos e um amplo quintal para realização de eventos, localizada na Rua Elias Acras, 97, próximo ao centro de Guarulhos. Com dezenove expositoras, um estúdio de tatuagem móvel e três DJs, o encontro reuniu cerca de 200 pessoas.

ARMAR A BARRACA E FAZER ACONTECER

Dá bastante trabalho produzir uma feira com ambiente agradável, comidas gostosas, música boa e oferta de acessórios e peças de decoração a preços acessíveis. Realizado bimestralmente, os preparativos para cada nova edição começam assim que o evento anterior termina.

O primeiro e mais importante passo é mapear novas artesãs e empreendedoras com potencial interesse em participar do evento. Sim, a proposta da feira é ser rotativa, sempre com novas expositoras a cada edição. Jo conta que a premissa garante boas surpresas não só para os clientes, mas também para as organizadoras.

ROTATIVIDADE DE MARCAS: NOVIDADES PARA OS CLIENTES E OPORTUNIDADES PARA NOVAS EXPOSITORAS

“É comum descobrirmos que pessoas muito próximas a nós, como vizinhas e colegas, criam trabalhos incríveis e precisam um lugar para expor e vender seus produtos e serviços”, afirma.

Para participar da feira como expositora é necessário pagar uma taxa de R$ 50. Segundo as organizadoras, o valor cobre custos com aluguel de mesas para as expositoras e garante água mineral à vontade para todas. Ao mesmo tempo, a organização da feira não gera lucro e as organizadoras tiram grana por meio da venda de seus produtos expostos no evento. Andressa, que já levou a sua marca de cerâmica a alguns bazares no centro de São Paulo, destaca que o valor cobrado pelo Mercado Rosa-Choque é mais em conta do que a cobrada em eventos na capital paulista, em que a taxa pode ser três vezes maior.

“Na Capital você não participa desse tipo de feira por menos de R$ 150 e ainda arca com os gastos de deslocamento”, conta ela.

Segundo uma reportagem publicada no jornal Folha de S. Paulo em 2017, a Feira Jardim Secreto, que ocorre periodicamente no bairro do Bixiga, cobra R$ 350 dos expositores.

FOMENTO À ECONOMIA CRIATIVA

Bazares e feiras são uma boa oportunidade para quem busca por produtos e serviços cheios de histórias. Como ali as expositoras também são as criadoras, os consumidores podem conhecer detalhes e inspirações por trás de peça. Ao mesmo tempo, o contato próximo com o público permite às criadoras captar oportunidades de aprimoramento de produtos a partir das devolutivas de quem compra, adequando os itens as necessidades, desejos e características específicas dos clientes. Tânia Oliveira, uma das artesãs que participam da feira, comenta esse elo de proximidade.

“O produto que eu vendo hoje é muito diferente daquele que eu vendia antes de participar de bazares como o Mercado Rosa-Choque”, diz ela. “Graças à experiência adquirida nos eventos, consegui refinar meu trabalho e vender muito mais.”

Tânia é dona da Luz Mantra Mandalas, marca que produz mandalas inspiradas na cultura do povo indígena mexicano Huichol. Inicialmente, ela fabricava mandalas que mediam de 40 a 80cm. Hoje, suas peças mais vendidas medem 26 e 8 cm. Ela complementa:

“O Mercado Rosa-Choque foi um divisor de águas. Além da visibilidade para a minha marca, a proposta do projeto é extremamente necessária. Eu tenho orgulho de fazer parte desse time de mulheres empreendedoras, que lutam para sobreviver e se sustentar com o trabalho que escolhemos realizar”


O Mercado Rosa-Choque está inserido na chamada Economia Criativa. Esse setor econômico é formado por negócios de criação, produção e distribuição de bens e serviços que usam e abusam da criatividade, da cultura e da intelectualidade como matéria prima para gerar renda e criar empregos, promovendo diversidade cultural.

ELAS POR ELAS: ECONOMIA CRIATIVA REPRESENTA 3,9% DO PIB PAULISTA

Dados oficiais mostram que, no Brasil, a economia criativa corresponde a 2,64% do Produto Interno Bruto e é responsável por 4,9 milhões de postos de trabalho. No Estado de São Paulo, a participação é de 3,9% do PIB, com 1,5 milhão de empregos.

Além da feira, o Mercado Rosa-Choque também é responsável por dar um novo movimento ao Jardim São José, onde rola o evento. Quando a feira na Casa Lado termina, por volta das 19h, é comum o público descer para a Maria Jovem, um antiquário que a noite vira casa de show para amantes do samba e do jazz.

Por ser uma catalisadora da economia local, o Mercado Rosa-Choque se consolidou como uma das mais relevantes feiras de pequenas produtoras de Guarulhos. No final de 2019, elas integraram a programação do Arrastão Cultural, festival realizado pelo Sesc Guarulhos que reúne atrações artísticas e evidencia a produção cultural da cidade. Graças a essa articulação, muitas mulheres que dificilmente teriam a chance de ocupar espaços como esse puderam gerar renda com sua arte e trabalho.

UMA FEIRA 2.0

A expansão do coronavírus pelo estado de São Paulo provocou o cancelamento das novas edições do Mercado Rosa Choque em 2020. Desde o início da pandemia, a cidade de Guarulhos lidera o ranking de contaminações na região do Alto Tietê. Até a publicação desta reportagem, a cidade seguia na fase amarela do plano de flexibilização do Estado, a segunda mais rígida de um total de quatro fases e que impede a realização de eventos presenciais.

Frente as medidas de distanciamento social, as mulheres do Mercado Rosa-Choque recorreram ao digital. Assim nasceu a Mercado Rosa-Choque “In the House”, evento on-line e gratuito que em agosto colocou as DJs Laura Fonseca, do coletivo de discotecagem Cremosa Vinil, e Lorrany, do também coletivo de discotecagem Beat Femme, para fazer geral dançar dentro de casa.

Outra frente foi a utilização do próprio perfil da feira nas redes sociais para compartilhar a trajetória das expositoras, de modo a lembrar o público da importância de comprar do pequeno produtor local, especialmente em momentos de crise. Entre as histórias compartilhadas está a da Hayato Sushi, marca que “nasceu a partir de uma mulher, mãe recente, que em meio à pandemia e ao desemprego resolve empreender e levar o sabor da comida japonesa a todes”.

Como a pandemia aumentou o consumo online, Andressa e Jo estão estudando abrir uma loja online para que as expositoras da feira vendam pela internet. É como Jo costuma dizer, trabalhar para gerar renda e pelo prazer se somar. Só progresso, mulherada.

EMPREENDEDORISMO: ALTERNATVA DE RENDA PARA MÃES DURANTE A PANDEMIA

FOTOGRAFIAS: Kalinca Maki

Esta reportagem integra o projeto Mapeamento de Coletivos e Produtores Culturais da Região Metropolitana de São Paulo e conta com apoio do Edital ProAC nº 14/2019, de incentivo ao desenvolvimento da cultura popular, tradicional, urbana, negra, indígena e plural no Estado de São Paulo. Veja outras reportagens da série:
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