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Pussy Riot: “A prisão serve para te quebrar — e ser você mesma é a sua melhor arma”

12/02/2020

Em entrevista exclusiva, ativista do Pussy Riot fala de vivência na prisão, repressão às artes, líderes religiosos e governos autoritários.

Em 21 de fevereiro de 2012, Maria “Masha” Alyokhina e suas amigas Nadezhda Tolokonnikova e Yekaterina Samutsevich entraram na Catedral do Cristo Salvador, sede da igreja ortodoxa russa, na cidade de Moscou, vestida de balaclavas coloridas e empunhando guitarras e microfones. Elas tinham ido pedir a Virgem Maria que expulsasse Vladimir Putin da presidência do país.

Naquela época, Putin estava no poder há 13 anos e seu regime estava marcado por relatos de censuras, xenofobia, lgbtfobia, perseguições judiciais e penais e até assassinatos.

A ação do trio na igreja, acompanhada de outras pessoas não identificas, tratava-se de mais uma apresentação relâmpago da banda punk que elas formavam: o Pussy Riot. A ideia era apresentar a música “Punk Prayer: Mother of God, Chase Putin Away!” [Oração Punk: Mãe de Deus, expulse Putin!], que trazia trechos como: “Virgem Maria, mãe de Deus / Tire Putin do poder/ As mulheres têm que parir e amar / Merda, merda / Santa merda”.

A reza durou apenas 40 segundos e foi interrompida pela polícia. Um vídeo da ação foi editado e divulgado na internet e culminou com a prisão do grupo.

Sem direito a julgamento justo, imparcial e independente, elas foram condenadas a dois anos de prisão. O caso, que foi o primeiro de punição severa devido palavras, discursos ou intervenção artística, ganhou repercussão internacional. A campanha mundial #FreePussyRiot, que pedia a libertação das jovens, foi abraçada por artistas como o ex-Beatles Paul McCartney e Madonna.

Na época de sua prisão, Maria tinha 23 anos e cursava o quarto ano de Jornalismo. Na cadeia, ela chegou a fazer greve de fome, na tentativa de sensibilizar a justiça para uma série de infrações aos seus direitos civis. Os protestos dentro da prisão a levaram a passar dias na solitária.

A vivência na cadeia está narrada em reflexões, frases e ilustrações no livro “Riot Days” (2017), escrito por Maria e, agora, lançado no Brasil pela editora Hedra.

INTEGRANTES DO PUSSY RIOT NA CATEDRAL DE CRISTO SALVADOR DE MOSCOU (Divulgação)

A integrante do Pussy Riot esteve em São Paulo nos dias 28 e 29 de janeiro para lançar a obra, que no Brasil será vendida embalada em uma balaclava amarela, como a que Maria costumava usar nas apresentações do Pussy Riot. O acessório, que pode ser usado em manifestações por aqui, foi produzido pela Cooperativa Libertas, formada por mulheres egressas do sistema prisional brasileiros.

Os primeiros exemplares do livro também virão acompanhados por dois cordéis da coleção Pandemia, da mesma editora, e que relata a trajetórias de mulheres brasileiras que passaram por situação de cárcere.

Em São Paulo, Maria também integrou a programação do Festival Verão Sem Censura, promovido pela prefeitura da cidade. O evento, que aconteceu no Centro Cultural São Paulo (CCSP), contou com a exibição do documentário “Act and Punishment”, de Yevgeni Mitta, que retrata a criação e trajetória do Pussy Riot, mostrando como três garotas incendiaram um país ao fazer resistência ao governo arbitrário de Vladimir Putin.

A ativista russa participou ainda de um debate sobre o sistema prisional com Batia Jello, da Frente Estadual Pelo Desencarceramento de São Paulo, e Marcita Amores, da Cooperativa Libertas. A mediação do encontro ficou a cargo de Preta Ferreira, cantora e uma das lideranças do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC). Preta foi presa em 2019 sem provas e passou mais de 100 dias detida.

A programação do evento foi encerrada com um show gratuito da banda punk ao lado de Linn da Quebrada e Jup do Bairro.

Durante a preparação para o show, Maria recebeu a Emerge Mag para uma conversa exclusiva. Valente, ela não se furta a missão de que o mundo tome conhecimento das arbitrariedades praticadas por Vladimir Putin no gélido país do leste europeu.

“Como artistas que somos e com o microfone na mão que temos, nós assumimos uma responsabilidade perante a sociedade e devemos honrá-la, dando-lhe um olhar sobre como está o mundo e como podemos melhorá-lo”

MARIA ALYOKHINA, VOCALISTA

No bate-papo com a repórter Karol Pinheiro, Maria também comentou sobre as particularidades do sistema prisional russo, a associação de líderes religiosos a tiranos, as semelhanças dos governos Bolsonaro e Putin e o cenário de repressão às artes nos dois países.

Com o mesmo homem branco, cis, hétero ocupando o cargo mais alto de seu país há 20 anos, a ativista de 31 anos traz nessa entrevista significativos conselhos sobre como resistir em tempos brutos.

“Quando se vive sob um sistema opressor, você entende que basta ser você mesma para derrotá-lo”, acredita ela.

Leia a entrevista completa a seguir.

Emerge Mag: Nesta sua passagem pelo Brasil, houve a exibição do documentário “Act and Punishment” seguido de um debate sobre o sistema carcerário no Centro Cultural São Paulo. O que você aprendeu sobre o sistema prisional brasileiro?

Maria “Masha” Alyokhina: Eu comecei a entender sistema prisional do Brasil quando me encontrei com as meninas da Cooperativa Libertas. Aliás, eu preciso dizer que estou feliz pela oportunidade de cooperar com elas nesse livro e agradeço aos editores brasileiros por nos apresentar.

Pelo que pude entender, as prisões no Brasil acontecem principalmente por causa das drogas. Além disso, há um marcador racial e social presente nessas prisões.

Na Rússia não temos esse sistema de opressão. Na verdade, lá qualquer pessoa pode ser presa, seja por suas ações ou pelo que escreve em redes sociais, como o Facebook e Twitter. Para piorar, criaram uma lei que pode bloquear o acesso, a qualquer momento, à sites e plataformas estrangeiras, como o Youtube. Nesse sentido, eu vejo a Rússia indo de encontro ao que a China tem feito.

Eu diria que há algumas similaridades entre brasileiros e russos, não tanto no que consiste ao sistema prisional, mas definitivamente na linha política que nossos presidentes estão seguindo. Nós temos Vladimir Putin por mais de 20 anos como presidente e, por aqui, vocês têm Bolsonaro, que ainda está fresco. Então, eu acho que é importante que colaboremos uns com os outros de alguma forma, trocando experiências e esquecendo as nossas diferenças linguísticas e fronteiriças, para criar uma comunidade internacional de apoio.

EM SUA PRIMEIRA PASSAGEM PELO BRASIL, MARIA FICOU CHOCADO COM A SEGREGAÇÃO SOCIAL DO PAÍS (Foto: Kalinca Maki)

O Brasil é o quarto país com maior população carcerária feminina do mundo, com 42 mil mulheres – dessas, 70% são mães. A Rússia ocupa a terceira posição no ranking.
Somos vizinhas [risada irônica].

Infelizmente, sim. Qual é a relação do sistema carcerário com o sistema patriarcal de subjugação de mulheres ainda em curso?

Eu vejo o sistema patriarcal quando nós praticamente não temos protestos dentro das prisões femininas russas. Diferentemente dos Estados Unidos, onde há uma cultura de protesto. Lembra da série Orange Is The New Black? [A penitenciária feminina de Litchfield, retratada na série da Netflix, mostrou na 5º temporada uma rebelião, motivada pelo assassinato de uma presa por um policial]. Esse é um exemplo totalmente contrário ao que acontece na Rússia.

Quando estive presa, eu era praticamente a única na prisão a protestar. A única que visitava a comissão de Direitos Humanos e que escrevia cartas-denúncias, junto com meu advogado, sobre as condições em que nós todas estávamos. Infelizmente, as mulheres russas não têm essa cultura de protestar por seus direitos.

Somos o único país da Europa que não criminaliza mais a violência doméstica. Então, eu acho que o sistema prisional é como um espelho da nossa sociedade. É muito raro ver mulheres liderando protestos políticos.

Por exemplo, aqui vocês tinham Marielle Franco [vereadora carioca assassinada em março de 2018 – após mais de 700 dias do crime, o caso ainda não foi concluído pela polícia]. Ela era incrível! Um baita exemplo do que um líder político deve ser. Recentemente, li sobre o caso e está muito claro, sabe? Ela deveria ser um símbolo da luta contra o atual presidente, porque esse foi um assassinato político, e isso não deve ser deixado de lado.

LEIA MAIS: Opal Tometi, do Black Lives Matter: “As pessoas negras sabem que seus direitos estão sendo violados”

O quanto a prisão mudou você e a forma de organização do Pussy Riot

Em 2012, nós não éramos uma organização propriamente dita. Nós éramos um coletivo anônimo de Moscou, que fazia performances em locais aleatórios no centro político da cidade.

Mas, desde que fomos presas e nos libertamos do uso da máscara, a gente começou a descobrir novas formas de protestar. Eu entendi que era muito importante seguir lutando sendo eu mesma, independente das condições.

O sistema prisional russo é uma cópia do sistema prisional que existia em Gulag [campos de trabalhos forçados da União Soviética que ficavam em regiões isoladas do país. Criminosos, presos políticos e qualquer cidadão que se opusesse ao regime eram submetidos a isolamento, frio intenso, trabalho forçado e alimentação e condições sanitárias mínimas]. E o único objetivo desses lugares é quebrar você, sua personalidade. Nós ainda temos esses campos de trabalho.

CARTAZ DO SHOW EM SÃO PAULO: UM GOVERNO REGIDO POR VIOLÊNCIA, CENSURA E POLUIÇÃO (Victor Meira)

É um sistema onde todos os prisioneiros devem trabalhar, seis dias na semana, 14 horas por dia, para ganhar de três a quatro dólares no final do mês, como “salário”. Sem acesso a uma boa alimentação, sem medicamentos caso precisar, sem privacidade, sem qualquer condição humana. E tudo isso foi copiado de Gulag.

Então, quando se vive sob um sistema assim, você entende que o que precisa fazer para derrotá-lo é ser você mesma. Acho que o grande desafio foi continuar sendo e fazendo o que estávamos fazendo, só que dentro da prisão. Creio que de alguma forma nós conseguimos isso.

Ao sair da prisão nós decidimos que íamos falar dos problemas do cárcere. Então, lançamos o MediaZona [site de notícias independentes sobre o sistema prisional russo, casos criminais, leis e direitos humanos].

O Estado Brasileiro ainda criminaliza movimentos artísticos e culturais, no passado fora o samba. Hoje é o funk. Como criar rupturas nesse contexto?

Há exemplos disso em todo lugar hoje em dia. Nos Estados Unidos, por exemplo, tivemos o Black Lives Matter [Vidas Negras Importam], que mobilizou o país devido a morte de jovens negros [como Eric Garner que foi morto por estrangulamento durante uma abordagem policial e Michael Brown, morto a tiros acusado de venda de cigarros ilegais]. Muitos artistas levantaram sua voz também em favor dos protestos.

Eu penso que é com isso que artistas devem trabalhar. Como artistas, nós temos responsabilidades. Nós temos o microfone na mão. Nós escolhermos ser pessoas públicas, então, nós assumimos uma responsabilidade perante a sociedade – e devemos honrá-la dando ao outro um olhar sobre como as coisas podem ser no mundo.

RECÉM-LANÇADO NO BRASIL, O LIVRO RIOT DAYS NARRA A VIVÊNCIA DE MARIA NO SISTEMA CARCERÁRIO RUSSO

Integrantes do Pussy Riot foram presas ao fazer uma manifestação dentro de uma igreja. Ao mesmo tempo, grupos religiosos influenciam as pautas sociais e econômicas do governo brasileiro. Quais são as principais semelhanças e diferenças entre Rússia e Brasil no tema influência religiosa no governo?

Bom, primeiro eu preciso te dizer que eu sou cristã. No entanto, penso que quando líderes religiosos juntam forças com ditadores, isso não tem nada a ver com religião, não tem nada a ver com o cristianismo. É sobre dinheiro. Sobre ditadores dando dinheiro a eles em troca de aprovação religiosa infinita, usando a palavra de Deus como respaldo para ações de seus mandatos.

É verdade que nós tivemos um processo assim na Rússia, mas depois de tudo o que houve, da nossa prisão, nós [Pussy Riot] conversamos sobre e hoje temos uma posição a respeito à igreja.

Eu estou orgulhosa de ver que há padres abrindo as portas das igrejas para proteger manifestantes da polícia. Eu estou orgulhosa de ver padres escrevendo cartazes pedindo a libertação de prisioneiros políticos.

Isso é algo que nós não tínhamos antes. Na época da União Soviética, o cristianismo foi banido e os padres foram enviados aos campos de trabalho forçado, sujeitos a todas as situações ruins que acontecem por lá.

Eu acho que, no Brasil, vocês estão enfrentando um novo estágio disso. E as pessoas, muito provavelmente, ainda não se deram conta do que essa relação se trata. Aliás, eu vi ontem um vídeo da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos de vocês [Damares Regina Alves] e ela é totalmente maluca. No vídeo ela confundia a princesa Elsa com a Aurora e depois dizia que Elsa é lésbica. De onde ela tirou isso? Sério, de onde? Isso é loucura. E ainda teve toda aquela história de meninos vestem azul, meninas vestem rosa… e isso é, no mínimo, engraçado quando a gente assiste no Youtube.

Mas na Rússia, por exemplo, a gente tem um caso criminal contra uma garota que estava encenando uma peça sobre estereótipos de gênero. A cena era basicamente essa: meninos vestem azul e meninas vestem rosa. No entanto, abriram uma queixa e a garota foi condenada a cinco anos de prisão. [O caso é o de Yulia Tsvetkova, de 26 anos, artista e diretora de teatro para jovens acusada de pornografia e propaganda gay por dirigir uma peça de teatro juvenil sobre estereótipos de gênero e por postar nas redes sociais obras de arte que descrevem vulvas e pedem o fim de tabus em torno da anatomia vaginal e da menstruação].

Entende, é isso que quero dizer com “hoje em dia todo mundo pode ir preso na Rússia”. A parte boa disso é que a sociedade civil começou a se unir. Perceberam que hoje é você e amanhã pode ser eu.

O COLETIVO PUSSY RIOT FEZ SHOW GRATUITO NO CENTRO CULTURAL SÃO PAULO, DURANTE A PROGRAMAÇÃO DO FESTIVAL VERÃO SEM CENSURA (Foto: Kalinca Maki)

O cartaz do show que vocês fizeram é incrível. Como os temas poluição ambiental, cultura do armamento, violência e censura se relacionam?

É muito simples. Qualquer um que lê as notícias sobre Bolsonaro faz essa relação. E quando nossos editores nos mostraram o cartaz, perguntaram se era isso que queríamos. Eu disse: sim!

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O que mais chamou sua atenção nessa passagem pelo Brasil?

Eu estou aqui há dois dias apenas, então eu não vi muita coisa ainda. Mas as mulheres que estavam no debate e as meninas do Libertas são maravilhosas! Eu sabia muito pouco a respeito do Brasil e do povo quando cheguei aqui. Eu nunca estive aqui antes. Mas todo mundo que eu conhecia até agora foram incríveis.

Agora, sobre o que eu pude ver nas ruas. Bom, vocês têm uma segregação social alta e muito nítida. Eu não esperava por isso.

FOTOGRAFIAS: Kalinca Maki e Divulgação

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